O dia em que deixamos de chorar
Já chorei por mil e uma coisas. Uma vez entalei o dedo e chorei. Outra quando os meus pais regressaram à Alemanha para trabalhar no final das suas férias de verão e me deixaram em Portugal, entregue ao cuidado dos meus avós. Estudar na escola portuguesa era uma daquelas prioridades que os meus pais tinham planeado para mim desde que nasci. Mas se existe um momento de choro sentido que consigo recordar vivamente ainda hoje é um que se passou num determinado dia da minha infância. Não deveria ter mais de oito ou nove anos e a minha avó costumava ir à feira de Alhandra, aquela que se realizava debaixo da ponte da A1. Eu, pequeno, ficava maravilhado com todas as cores, formas e texturas das bancas de venda e entretinha-me a observar tudo em detalhe enquanto a minha avó fazia as compras necessárias. Foi num desses momentos de observação que vi algo que me comoveu e encheu os olhos de lágrimas. Tinha avistado um velho pedinte, barba grisalha e mal tratada, roupagem suja e envelhecida como se esta tivesse nascido com ele e o acompanhasse desde sempre. O mendigo já tinha percorrido várias bancas de venda de verduras a pedir, e eu observava o seu percurso sem compreender na totalidade o que significava a real miséria deste homem. A dada altura uma das muitas vendedoras de produtos hortícolas, com um coração um pouco maior que o dos restantes companheiros de feira, abriu um saco de papel e colocou lá dentro alguns tomates e mais umas quantas verduras. A minha avó continuava distraída com as suas compras e eu, quase encostado a ela, continuava a observar o mendigo. Este gesticulou e balbuciou algo para a senhora que entretanto lhe tinha passado o saco de papel para as mãos. Não ouvi o que disse mas talvez tenha sido um tão conhecido “Muito obrigado e Deus lhe pague!”. Segui-o com o olhar enquanto este se afastava com alguma dificuldade de locomoção. A dada altura desequilibrou-se, talvez devido à idade avançada e alguma maleita que lhe afectava as articulações, deixando cair no chão o saco de papel que momentos antes lhe tinha sido depositado nas mãos. Este tinha-se rompido com o impacto, espalhando os vegetais pelo chão de terra batida meio enlameada. Vi-o a dobrar-se com dificuldade para tentar apanhar os vegetais sujos e amachucados do chão. Aquela imagem atingiu-me como um raio. Um nó formou-se na minha garganta e eu comecei a soluçar. As lágrimas começaram a correr-me rosto abaixo. A minha avó, interrompendo o que estava a fazer, olhou para mim e sem compreender disse-me algo ao qual não tomei atenção. Simplesmente chorava. A angústia de sentir a solidão e a miséria daquele mendigo tinha-se apoderado de mim. Como era possível alguém ter tão pouca sorte na vida? Quando dei por mim estava a ser arrastado para a paragem do autocarro, pois a sessão de compras tinha terminado, e o resto do dia foi passado a pensar no que teria sucedido ao mendigo e aos seus parcos alimentos.
Confesso que depois deste dia já voltei a chorar pelos mais diversos motivos, como qualquer pessoa que vive uma vida cheia de encontros e desencontros. Mas à medida que vou avançando na idade, começo a acreditar cada vez mais que todos nós temos um dia em que deixamos de chorar de forma não egoísta, em que nos entregamos ao sentimento de forma altruísta e sincera sem ser por mera pena de nós próprios. Talvez aquele dia tenha sido o dia em que realmente deixei de chorar.
PS: a história, apesar da adaptação literária, é real e recordo-a sempre que preciso de me reencontrar comigo próprio.
Nota da Administração: ............................
8 comentários:
Bravo Inconformado, bravo!
Porra, Porra, Porra! Lagriminha ao canto do olho!
Bravo! (ó raios... lagriminha muito atrevida!)
Ahhh bom! Tava a ver que não havia reacção à coisa!
E finalmente alguém que sacou alguma emoção à PKB!!!
Fosga-se!!
:)
(E sim, faço minhas as palavras do Finúrias... Bravíssimo...)
eheheheeh, Me! Não há dúvida de que sou uma boa bitola =))
Bjocas!
:)
Hellos...
Não criticando ninguem, é triste termos um potencial vencedor por causa de uma historia infeliz e que dá que pensar. no entanto o tema do concurso era esse mesmo, fazer chorar ou whatever parecido apelando À piada OU à desgraça!
bom testemunho, tenho muita pena que casos destes aconteçam e vergonha de não ter tomates de fazer nada quando vejo algo semelhante mas sem duvida é algo que marca uma vida.
Eu quis reagir!! Mas fiquei com um nó na garganta de emoção e não consegui. Porque quase me deu vontade de dizer já venceu pelo que me fez sentir. Porque sabemos que estas histórias acontecem, porque também me parte o coração quando vejo algo similar. Ó porra, que me estou a emocionar outra vez!
Irremediavelmente Inconformado,
Hellos...
Sabes que é mais fácil apelar à lágrima da tristeza do que do riso... muito mais fácil. Todos temos pontos "fracos", por assim dizer, que são mais ou menos iguais em todos.
Falo por mim, é muito mais fácil porem-me a chorar de tristeza ou empatia do que de riso… Não rio à gargalhada facilmente… Chorar? Bolas… facílimo.
Não tenhas pena que um texto assim possa vir a ganhar o grandioso concurso. Se achas isso, é porque és um rapazito cheio de coisas boas dentro de ti.
Beijos.
K,
Oh, miga. Entendo-te. O Inconformado é lixado. Não se pode brincar com ele… não se pode lançar um concurso que ele entra logo a matar…
Beijos linda. Beijos.
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