26.10.10

Idade Adulta, ou não. Talvez, apenas Idade...


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Quando era miúda, ouvia constantemente aquela frase que, penso, todos ouvíamos: “Quando fores grande, já podes.”
Ora, eu, que apenas fui “pequena” durante poucos anos, rapidamente passei a ser grande demais para que me pudessem dizer isso sem eu responder algo de ridiculamente textual logo a seguir. Do alto dos meus poucos anos mas respeitável tamanho comecei a ouvir “Quando fores adulta, já podes”.
Revoltada com aquela capacidade de argumentação de quem era adulto mas não maior que eu, lá me reduzi à minha insignificância e, naturalmente, esperei que acontecesse o que seria suposto acontecer para eu, um dia, poder receber título de Adulta. A maneira como me diziam aquilo levou-me a crer que iria haver, algures no tempo, uma espécie de prova que eu teria de superar para finalmente poder ingressar no mundo dos Adultos.
E eu lá esperei. E os anos foram passando. E eu esperava.
Esperava com aquela impaciência típica de quem não sabe pelo que espera, mas sempre de olho na “oposição”. Aprendi a observar aquele mundinho, a ouvi-lo, atenta a qualquer sinal que me garantisse que viria aí A Prova.
É claro que tal nunca chegou a acontecer assim da forma como eu pensava.
É claro que esta coisa de sermos adultos comporta muito mais que idade e tamanho. E é claro que, quando acontece, nem damos por ela. Nem mesmo com as listas mentais que se fazem de modo a que nos orientemos nessa direcção conseguimos perceber se estamos perto ou longe da coisa. Podemos ir riscando os itens a toda a velocidade sem que aquela sensação que tanto esperamos sentir nos chegue (mesmo que não façamos a mais pálida ideia de qual seja) e também podemos nem sequer chegar a pensar nisso e já aquele peso, aquela sensação de não mais sermos crianças, de repente, se abater sobre nós sem aviso prévio.
Se me acho adulta por ter a minha independência financeira que, por sua vez, me permite uma data de outras independências incluindo as de espaço e tempo? De certa forma, sim. Saber que não dependo de mais ninguém para fazer a minha vida permite-me ser mais selectiva em relação a quem dou ou deixo de dar explicações sobre as minhas coisas, opções, decisões e atitudes, por exemplo. A escolha, em relação a tudo, é sempre minha. Sempre. Para além disso, posso chegar a casa, tirar as botas, adormecer no sofá e saber que, mesmo que lá as deixe durante dois dias e não chegue nunca a dobrar a manta que lá tenho para as noites mais frias (ou acorde às 6 da manhã, toda gelada e a lamentar as várias dores que tenho no corpo devido a tal acto irreflectido), ninguém me vai dizer nada (é só vantagens). A liberdade que acumulamos com o passar dos anos é uma coisa fantástica.  
Apesar de tudo isto, acho que me comecei a sentir Adulta no sentido mais lato do termo quando, provida de anos de ensinamento e de calo e experiências que me foram indicando o que dói e o que é doce, ou seja, de costas quentes em relação a mim própria, dei por mim a poder ficar completamente calada e imóvel, sem necessidade de provar seja o que for a seja quem for, a poder, sem medos, assumir para mim a totalidade das consequências dos meus actos, e a poder sentir a verdadeira força das intemporais e sábias palavras “Estou-me a cagar para esta merda – faço o que quiser”.
Velha só me comecei a sentir quando numa noite destas eu e amiga, da mesma idade, vimos exemplar da espécie masculina absolutamente deslumbrante e decidimos começar a tentar adivinhar idade do espécimen. Ela dizia aí uns 28-29 mas eu, pessimista até à última casa e fiel crente na teoria de que já não existem homens solteiros (decentes) nascidos na década de setenta, atirei com uns relutantes 24.
Sendo eu a Adulta crente naquela coisa do “Estou-me a cagar para esta merda – faço o que quiser”, peguei e fui perguntar.
Eu devia ter desconfiado da idade do moçoilo quando ele me perguntou “Que idade me dás?” em resposta à minha pergunta, eu lhe disse “Isso é resposta à gaja…” e ele nem sequer sorriu! Ele não percebeu!
Vinte e um.
O gaiato tinha vinte e um anos.
E agora, com licença que tenho de ir pagar umas contas e ver se a roupa que estendi já está seca e pronta a passar a ferro.
Já não tenho idade para isto.

14.10.10

Iguarias Regionais



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Há uns dias, à mesa de jantar no final de refeição com progenitores e co-rebento.

Eu (de nariz encolhido e ar suspeito segurando queijo curado entre os dedos): Anda cá… cheira lá isto…
Little Sister: Sniff, sniff, sniff… ahhh… sniff
Eu (baixando a voz e semi-cerrando os olhos): Isso cheira-te a quê?
Little Sister (de olhos esbugalhados e ainda com queijo enfiado nas narinas): Sei lá… A nhanha!!??
Eu (rindo-me e falando baixinho): Por nhanha queres dizer…
Little Sister (rindo-se e falando demasiado alto): De homem! Nhanha!!
Pápi baixa a cabeça, em silêncio, esboçando sorriso.
Mummy Dearest (disfarçando riso e falhando maravilhosamente): É de Bode, pá. O queijo é de Bode. Calem-se com essa conversa!

Após minutos de risota intensa em que tudo foi atribuído à excelente qualidade da segunda garrafa de vinhaça alentejana reserva de 2006 de sei lá onde (não me lembro, damn it!!), lá se foi saboreando iguaria supostamente de bode, devidamente limpo e raspadinho, com especial dedicação e atenção… E não, sabor, após cuidada consideração, não correspondia ao que prometia. Felizmente!

9.10.10

Descontos.


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Tive uma professora que, no inicio de um semestre, nos deu a bela notícia de que todos os alunos da turma teriam 20 valores no final do mesmo. Os mais incautos até bateram palmas. Os outros esperaram pelo resto que, inevitavelmente, viria apegado a tal notícia.
Todos tínhamos vinte valores, sim, disse-nos ela. A partir dali e até final do semestre seria apenas uma questão de ir descontando, acrescentou.
Na altura, apreciei o laivo de humor e sorri-lhe, consciente de que com ela as coisas seriam muito mais complicadas do que simples contas de subtracção.
Apesar de muitas vezes ter repetido a outros o que ela nos disse, penso que só agora começo a acreditar que, de facto, as coisas por vezes são mesmo tão simples quanto uma conta de subtracção sobre um total à partida garantido.
Passamos a vida a descontar coisas. Vivemos em quase permanente desconto.
Vamos descontando inocência a cada curva mal calculada; confiança a cada passo mal dado. Descontamos curiosidade a cada lição aprendida da maneira mais difícil; fé a cada salto mal aterrado. Descontamos doçura de cada vez que alguma amargura nos invade; paixão de cada vez que as mesmas nos partem mais um pedaço do coração.
No entanto, como nada na natureza de perde e tudo se transforma, o que se perde é invariavelmente substituído por aquilo que, com mais força e determinação, causa tais perdas.
A gentileza vê-se substituída pela frieza que aos poucos lhe foi destruindo a vontade de existir; a compreensão pela obtusidade com que terá sido confrontada ao longo do tempo. As palavras vão-se de modo a acomodar o silêncio com que tantas vezes se depararam; a ternura de modo a fazer espaço para a rispidez com que tantas vezes terá sido recebida. A vontade de dar esvai-se nas recusas de receber e o próprio receber, cauteloso, vai-se encolhendo ou esticando ao sabor do que se acha não nos poder fazer mal. Até mesmo os actos, dantes tão simbólicos e representativos e valorados como sendo o tudo por oposição ao nada, vão desaparecendo, substituídos por uma imobilidade teimosa mas muito mais segura. Até a felicidade que em tempos sentíamos de forma genuína pelos outros vai desaparecendo de modo a permitir que o cinismo e uma certa dose de inveja permitam novos olhares sobre os motivos de tal felicidade, denegrindo-os e rebaixando-os para níveis na nossa escala de “auto-comiseração” com os quais conseguimos lidar mais facilmente.
Vamos ganhando consciência destas pequenas grandes transformações à medida que vamos passando por situações que, qual dejá vu, nos transportam directamente para outros tempos e outros momentos ou outras pessoas, recordando-nos de imediato os maus resultados daí advindos. Os bons passam a ser atribuídos a uma boa dose de sorte e de “timing”, negando-se que alguma vez mais possam ser repetidos.
Depois, um dia, olhamo-nos ao espelho e perguntamo-nos “Mas, para onde é que eu fui? Quem é esta pessoa? Onde é que eu estou?” e as respostas vêm-nos à cabeça em catadupa, num frenesim de memórias de pessoas e de momentos e de emoções tão fortes que preferimos fechar os olhos na esperança que o coração não sinta o que não vê.
Vamo-nos perdendo ao longo dos caminhos que fazemos. Pior, vamos entregando e vendendo ao desbarato pequenos pedaços de nós e, muitas vezes, nem nos preocupamos em os recuperar quando percebemos que o negócio correu mal. É mais fácil viver com aquilo que nos invade ou nos é entregue sem mais nem menos do que com aquilo que se conquista e depois se tem medo e terror de perder. É mais fácil culpar e responsabilizar alguém por algo que supostamente nos roubou ou que deixou diferente em nós, sem nunca olharmos para a possibilidade de tal ter acontecido porque deixámos. É mais fácil não perdoar quem nos matou as coisas que carregávamos tão perto do peito e do pensamento, que nos infligiu tanto sofrimento que nunca mais, a partir desse momento, fomos iguais ao que éramos ou ao que poderíamos ter sido. É mais fácil fazer uso desse escudo, desse capote sacudido, do que levantarmos a cara e não permitirmos que seja o que for de nós seja levado sem a mais pequena luta.
Dirão os mais racionais, possivelmente, que gato escaldado de água fria tem medo e que tudo se resume a algum mecanismo de defesa instaurado para nos impedir de voltar a sofrer o que se sofreu.
O problema é que nesses entretantos, no meio de tanto desviar de caminho e de olhar de modo a que o passado não entre directamente no presente, vamos esquecendo que, de facto, nada é igual: nem circunstâncias, nem pessoas, nem sítios, nem locais, nem ideias, nem contextos, nem mesmo nós, nada. Tudo evolui, tudo se transforma. Vivemos e aprendemos. Aquilo que nos horrorizava ontem, hoje fazemos na maior, sem medos e sem o menor pudor.
É o que estamos dispostos a viver com aquilo que aprendemos que faz de nós o que somos. Não somos nunca o que sobra do que a vida e os outros nos vão arrancando aos poucos ou o que sobra depois de perdermos batalhas que nem sequer lutámos.
Não podemos ter medo. Podemos ser cautelosos, podemos recorrer aos ensinamentos de modo a tomar melhores decisões, de modo a evitar o que é mau e incrementar o que é bom, mas não podemos viver a toque de medo, de receio, de puro terror do desconhecido.
Podemos não nos orgulhar do que vemos ao espelho, mas não podemos nunca fechar os olhos a nós próprios e fingir que o amanhã não virá, que não existiremos nele, que não nos afectará e que estaremos imunes a ser obrigados a viver de modo a que, daqui a uns anos, possamos olhar para trás e sorrir. Não será esse o derradeiro prazer e paz de espírito?
Então, porque vivemos como se não fosse?