25.9.12

Não somos de cá.

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Tenho um amigo que sofre de uma doença genética que, apesar dos apesares, também lhe confere um quoficiente de inteligência superior. A relação, existente, ainda não possui explicação científica suficiente que permita determinar, sem dúvidas, a relação entre uma e outra. Mas que já foi provado, já foi.
Dizia ele, num destes dia, que tem dificuldade em se “inserir” no meio no qual está inserido. O meio não puxa por ele. O potencial que possui é como um motor a trabalhar ao relantin para poder acompanhar os outros que tanto se esforçam para se colocarem em marcha. Considerado, por nós, como muito inteligente, e ainda que ele também o saiba, sente-se mal e deslocado, sedento por algo que o desafie e o faça sentir-se “em casa”. Dizia ele que o meio, no caso dele, não ajuda, tal como não ajuda seja quem for que necessite de estímulo para atingir e usufruir de todo o potencial que possui.
Eu, sem doença que me aumente a inteligência e tendo que me safar com a que me calhou, e como costumo dizer, pura e simplesmente não sou de cá. É o meio, sempre o meio, que me deixa num extremo ou outro – deslocada por excesso ou défice. Ou me sinto a mais, ou me sinto a menos. Ou fico pasmada com a incompreensão alheia, ou espantada com a minha própria incompreensão para com o que parece tão fácil e simples aos outros. Frustro-me comigo e com os outros, ajusto posições, medeio opiniões, resguardo pensamentos e resfrio acções. Não sou de cá e já me habituei tanto a ver-me como outsider que, temo, mais tarde ou mais cedo, vou ter que fazer algo para que o meio seja mais confortável. Ou me mudo a mim; ou mudo-me.
Não sou de cá. Não pertenço. Safo-me, mas não pertenço no verdadeiro sentido da palavra.
O amigo de que falei pensa emigrar para sítio onde possa finalmente sentir-se confortável. Ao que parece, Portugal não é para os inteligentes. Eu, teimosa e burra, provavelmente, ainda não cheguei a esse ponto, mas já estive mais longe. E é triste viver-se num sítio em que os sucessivos nãos que se vão levando às tantas apenas nos ajudam a colocar-nos a nós próprios em questão, especialmente depois de o cansaço das batalhas se tornar tão pesado que mal se tem vontade de falar, quanto mais insurgir contra ou a favor de seja o que for. As sucessivas más notícias que se vão recebendo, os constantes cortes de pernas que se vão levando, as inúmeras lâmpadas que se vão apagando ao fundo do metafórico túnel… Tudo cansa e destrói qualquer tipo de esperança ou fé no intangível, numa coisa chamada futuro.
E acho que estamos todos assim. Mais ou menos resignados, mais ou menos adormecidos, demasiado ou de menos inteligentes para fazer o que é preciso, expectantes com algo que apareça e nos salve de nós próprios. Temos vozes que fazem barulho. Mas as mãos e os pés arrastam-se pacificamente, mesmo que em protesto, fugindo da eminente humilhação de se ter que admitir que não há mais por onde construir e criar desculpas para nada. Nem para nós, quanto mais para o eles.  
Não somos de cá. Os portugueses que Portugal tem não são de cá. Parece que fomos transplantados para vir cá destruir isto, aos poucos, de dentro para fora. Não fazemos honra ao país e muito menos a nós próprios. Portugal merecia melhor. O nosso filtro falhou. Deixamos passar para diante quem nunca devia sequer ter entrado à porta. Falhamos ao nosso país. Falhamos o nosso país.
Não somos de cá.  

10.9.12

Calem-se.

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Mais valia estarem calados. Calados, caladinhos e de bico fechado. 
Mais valia não andarem com certas conversas e certas insinuações e certas perguntas e frases que começam com insultos e remédios para todos os males, incluindo os que hão-de vir e que fazem sofrer por antecipação. 
Mais valia não proferirem palavra, não mostrarem emoção, não despejarem sentimento para cima do próximo. Mais valia. 
Todos sabemos que ninguém vai fazer seja o que for, ninguém vai mexer palha, ninguém se vai levantar do lugar (quanto mais a voz) para insurgir contra tudo o que se acha mau e injusto e cruel e ruim. Todos sabemos que vamos fazer os possíveis para passar o mais despercebido possível, para não levantar ondas, para não falar mais do que o que se deve. Todos sabemos que faremos exactamente o que é esperado que se faça – nada. 
Mais valia estarem calados. Não encherem os cafés com conversas de ocasião que se atrapalham entre a mais recente subida de impostos e a última vitória da selecção. Não cansarem os colegas de trabalho com contas feitas ao ordenado que, afinal de contas, vai ficar ainda mais pequeno. Mais valia ficarmos todos caladinhos, de bico bem apertadinho, para depois não sofrermos com a certeza de que se as coisas estão assim, foi porque deixámos e se vão ficar pior, é porque vamos deixar que fiquem. 
Mais valia estarem calados. Todos. 
As conversas que deprimem e assustam, que enervam e enraivecem, todas elas misturadas com relatos de férias mal passadas a jantar em casa ou a levar sandoca para a praia, os queixumes do preço dos combustíveis, do IVA, da Segurança Social, dos cabrões que têm motorista, das finanças que roubam tudo e não deixam nada, dos filhos da puta que recebem o rendimento mínimo e não fazem nenhum… Calem-se. Parem com isso. Calem-se. Calem-se! 
Mais vale assim. Se não há intento de acção por detrás das palavras que se cospem e tossem e se arrancam da garganta, mais vale o silêncio. Se os pés e mãos não estão preparados para seguir o que a boca proclama, calemo-nos. 
Caladinhos é que estamos bem. 
Calem-se.  

3.9.12

Viagens – Partes II e III e IV


(o mais comprido post de sempre no OMQ. Aguentem-se.)

Precisava mudar de roupa. Liguei para Mummy Dearest para ver se iria estar em casa. Disse-me que não. Então mudo de roupa na estação de serviço e aproveito para comer qualquer coisa, disse-lhe eu. Então, mas foste a um baptizado e não comeste?, perguntou-me ela. Saí quando foram para o almoço para poder chegar a horas do funeral da tua Madrinha, irmã de Mummy-Mor, minha Avó (que está cá de visita após muitos anos de ausência), mas a quem eu e minha irmã também sempre chamámos de Madrinha, vá-se lá perceber porquê, mas que, de certa forma, sabia bem e elevava o papel dela para um nível muito mais nobre (penso eu de que…), respondi-lhe eu, mais coisa, menos coisa.  Ahhh, respondeu-me ela. ‘Tá bem. Então, vá. Anda.
E lá fui.  
Tendo estado fora de casa durante uns dias, tinha mala com roupa no carro. Parei na estação de serviço que ficava a caminho para trocá-la, à roupa, e aproveitar para comer qualquer coisa, como tinha dito que faria. Entrei no local feita femme fatal amolgada e de pé cagado com mochila às costas e saí de barriga cheia, calça de ganga e sandaleca rasa e limpa, qual versão feminina, e muito mais atrapalhada na mudança de vestimenta, do Super Homem.
Ainda cheguei a tempo de ir à Igreja, beijar a minha Avó e Mãe e família da Madrinha.
Sendo o primeiro funeral de alguém chegado a que ia, estava algo apreensiva com a minha reacção a tudo aquilo (os comichões ainda não tinham começado mas temia que o alívio das calças de ganga levassem a pele a pensar que estava livre… o que não estava, apesar da falta de creme se sentir cada vez mais…). Andei com a devida calma e sem dores nos pés, tentando absorver ao máximo o que me parecia mais importante em todo aquele evento. O padre que falava para esta comitiva tinha ar mais trabalhador que o anterior. As vestes eram mais pobrezinhas, não tão vistosas e pesadas. Mas não havia leveza nas suas palavras. Era um mestre de cerimónia, puro e simples, de discurso estudado e decorado, com timings e ritmos bem definidos. E tinha agenda a cumprir.
Falava-se de mais uma viagem, de um abandono e, em simultâneo, de mais uma entrada no tal reino (talvez para zona VIP?). Mas, desta feita, parecia-me que o discurso não era dos mais convidativos e que Deus, em vez do Director de Recursos Humanos a quem se fez prova de aptidão na parte da manhã, era referido mais como sendo Mordomo uma espécie de centro de acolhimento de fim da linha. A diferença de tom foi violentamente entristecedora; a diferença de manifestação de fé, tristemente violenta. Disse o Sr. Padre quando terminou a Missa: Convido-vos a acompanharem a Madrinha até ao Cemitério, oferecendo em troca o sacrifício do calor que se faz sentir. Pareceu-me, de alguma forma, incomodado com tudo se estar a passar naquele dia, com aquele calor, àquela hora. Para Padre, deve ter os fins-de-semana bem planeados e não deve gostar de surpresas, mesmo que seja Deus himself a chamar até si mais um elemento do rebanho.
Fui para o cemitério, onde Mummy Dearest me pôs a par dos acontecimentos das últimas 24 horas desde que tínhamos sabido do falecimento da Madrinha. Lembrou-se que eu nunca tinha ido a funeral de alguém da família (ao do meu avô, há dois anos, não pôde ir. Não é fácil apanhar um avião para o outro lado do mundo e chegar a tempo da cerimónia. De resto, tenho tido sorte… e a malta bons genes…). Eu anuí. Não me largou mais. Andava entre mim e a minha Avó mas esta, como pertence a quem tem outra idade e mentalidade, estava muito melhor preparada para os acontecimentos do que eu.
Eu só queria mandar aquela gente toda à merda. Estava estupefacta com aquilo e a minha cara de parva, a minha impaciência, a minha incredulidade, mostrava-o bem.
Ele era beijos e abraços entre gente que já não se via há anos (sempre com o lamento de ser “nestas circunstâncias” em pano de fundo). Ele era velhotes e velhotas a compararem idades e anos de nascimento e falando de sei lá quem (“que Deus tem”) como se tudo aquilo fosse uma grande e enorme fanfarra, um encontro de amigos, um bailarico sem música, um convívio sobe 32 graus de calor e sem as minis para refrescar.
É sempre assim?, perguntei.
Sim, é., respondeu Mummy Dearest.  
Mas isto é uma falta de respeito!, proclamava eu, indignada enquanto olhava para o caixão e ouvia as conversas do lado.
Há pessoas que só se vêem nestas alturas, explicou.
E isso não deveria servir para que se começassem a ver noutras?, perguntei.
Não houve resposta. Apenas um sacudir de ombros e olhar ternurento.
Estava fula. Zangada. Uma pessoa a ser levada para a terra, coberta dela, e outras a recordarem os bons velhos tempos e a fazerem contas às idades uns dos outros.
Lembrei-me de dois funerais a que fui quando muito nova. Foram ambos de gente muito jovem. Acidentes. O ambiente não era aquele. Havia pesar. Havia dor. Havia silêncio. Havia mãos e braços dados. Corpos amparados e abraçados. Havia respeito por o que tinha havido e pelo que nunca mais poderia haver.
Aqui? Nem uma coisa, nem outra. Apenas a família mais imediata estava lá de corpo e alma enquanto os restantes faziam a sua presença notar-se cumprimentando tudo e todos sem a mais pequena consideração pelo motivo que ali as levara (pareceu-me).
(As rogas e rezas e orações da manhã… as que pavimentaram o caminho para que pequeno ser humano fosse simbolicamente aceite em algo supostamente muito maior do que tudo o que algum dia compreenderá, segundo dizem, pareciam fracas frases feitas de vendedor de banha de cobra. Roga-se “olhai por nós”, reza-se “santificado seja vosso nome”, apela-se à bondade dos santos e santas e renuncia-se a satanás. E depois, um dia, quando se roga que uma vida seja salva por mais uns momentos, que seja prolongada por mais uns tempos, que dure mais um bocadinho que seja, a única resposta que se ouve é “estava na sua hora”. Não compreendo tais lógicas, tais formas de pensamento, tais crenças em algo que, espremido e puxado ao limite, não faz o que se pede (e se roga, se ora, se reza, se suplica, se pede de joelhos) que se faça, mesmo depois de se ter cumprido com tudo o que é necessário fazer para se ter direito a tais pedidos. Chega a nossa hora e pronto. Nada mais a dizer. Contrato expirado. Venha outra alma, outro filho ou filha, para ocupar o lugar vazio deixado por quem entrou num reino e se viu, uns anos mais tarde, a ser levado para a cave do mesmo sem direito a coffee break pelo caminho).
Desliguei os ouvidos e olhei a campa tal como tinha feito quando baixaram o caixão e eu, de frente para o mesmo, conseguia ver perfeitamente quem lá estava dentro. Agradeci à memória que tenho da Madrinha, agradeci e senti-me grata por a ter conhecido, enviei-lhe um enorme beijo, abracei-a e despedi-me. E não teria sido preciso padre e discursos e flores para o fazer. Aliás, tendo por base o que se estaria a passar à minha volta naqueles momentos, duvido que essas coisas sequer interessassem. Estava feito, a hora chegou, apareceu gente para ver e pronto. Fim.
Fui ao meu primeiro “verdadeiro” funeral numa tarde que seguiu uma manhã leve e bela, onde uma criança foi baptizada e aceite como Filha de Deus para tomar o lugar de outra Filha de Deus que perdera lugar aqui, mas ganhara ingresso directo no Além.
O contraste entre os dois, mesmo com episódio de mudança de vestimenta pelo caminho tipo interlúdio a meio do espectáculo, deixou-me perplexa e meio ressentida com uma data de coisas que há muito aprendi a resvalar para a tal dita couraça da minha indiferença. Mas fez-me diferença. E acho que sempre fará.

Saímos do cemitério ainda a campa não estava devidamente tapada e posta como deve ser. Acompanhei a minha Mummy e sua Mummy até casa. A vida teria o início da sua continuação logo ali. Banhos tomados (ambas passaram a noite a velar o corpo e não pregaram olho) e energias repostas, a vida tinha de continuar. Lá mudei de roupa mais uma vez. Calções e chinelos. Estava calor. Besuntei-me de novo com creme. Estava nova.
Fomos ver da bicharada, ver se tinham água e comida. Recolher os ovos. Ver as crias mais recentes. E enquanto eu andava de capoeira em capoeira a chamar Assadinho a um pato, Fricassé a uma galinha e Grelhadinha a outra, pensei, mais uma vez, no contraste que era estarmos ali, eu de regueifa refrescada e pézinho ao léu, a ajudar a que se criem bichos que, depois de mortos, nos ajudarão a manter-nos vivos por mais uns tempos. Tudo é vida e morte, bem sei, mas vir de um funeral de quem perdeu tal batalha e enfiar-me num sítio onde, logo à partida, a batalha também estaria perdida, pareceu-me no mínimo, irónico e meio parvo, até.
Mas vá… a vida continua e para que tal aconteça, a malta precisa de comer.
Voltamos para casa para tratar da janta. Peguei numa faca para descascar cebolas e reparei que a mesma estava tão bem afiada que quase ia cortando a cebola ao meio sem querer.
É justo que assim seja, pensei eu. Com tudo o que há para fazer, deve haver muito pouca paciência para coisas que não funcionem bem e como deve ser.
Lá estávamos nós, as três, a tratar da janta e a falar de nada em particular, mas com uma espécie de pressa difícil de decifrar. Ao meu lado, estava a minha Mãe a arranjar a galinha. Vi-a, pelo canto do olho, a atirar um pedaço de carne para dentro de um alguidar mas a falhar, fazendo com que o mesmo aterrasse dentro do lava-louça. Respeita a comida, disse-lhe eu, toda imbuída do espírito de gratidão que deveremos ter para com bichinhos que sacrificam as vidas para nós enchermos o papo. Olhei-a e vi que tinha um facalhão enorme, maior que o braço dela, na mão e que estava, de cada vez que deixava cair o mesmo sobre a carcaça da bichana, a cortá-la em pequenos pedaços para guisar. Ri-me. Respeito é uma coisa, eficácia e eficiência são outras. Cortei a cebola e ela a galinha, ambas com facas demasiado produtivas para o requerido mas, de certa forma, perfeitamente adequadas à falta de paciência para certas sensibilidades.
Comemos, e, mais tarde, quando fui para lavar a louça, cortei o dedo na tal faca demasiado afiada. Justiça poética, pensei. E dei por terminado esse dia, ainda com a regueifa a arder e com dedo a pulsar.

Existe a forte possibilidade de não mais ver a minha Avó depois de ela voltar para o outro lado do mundo. Existe a forte possibilidade, tal como no caso do meu Avô, de não conseguir estar presente quando chegar o dia dela. Em ambos os casos, custa-me mais pela minha Mãe, saber que ela, muito provavelmente, não voltará a ver a sua Mummy Dearest e que, em relação ao Pai, apenas visita a cemitério onde ele jaz poderá valer como tal.
Sei que nunca baptizarei nenhum filho ou filha meu, caso os venha a ter. Prefiro que suas almas fiquem entregues a eles próprios, sem lobbies daqui ou de ali que lhes atormente as decisões e lhes assombre os pensamentos.
Sei que, a não ser que expressem vontade em contrário, nunca deixarei entregue a nenhum Padre, dentro de nenhuma igreja, a tal viagem que os meus pais um dia terão de fazer para onde quer que seja que cada um deles acredite que vá. E sei que nunca obrigarei nenhum filho ou filha minha a despedirem-se de mim dessa forma, com frases feitas e citadas em galope, como se eu fosse apenas mais uma das criaturas de um enorme rebanho que mudou de pasto, indo desta para melhor, numa enorme torrente de viajantes que ora estão cá, ora não estão.
Talvez a vida de campo, como se diz por aí, para além de obrigar a facas mais afiadas, também obrigue a que haja uma visão bastante diferente do que realmente significa andar-se por cá e ir-se para lá. Talvez, ao deliciar-me com os patinhos bebé ou com os coelhos que ainda nem abriram os olhos e que são tão lindos e brincalhões ao mês de idade, saiba que os tais mimos que lhes dou, indo buscar erva verde e limpando-lhes a casa, são, na verdade, o meu agradecimento por saber que um dia, estarei a deliciar-me com eles de outra forma. Talvez os velhotes e velhotas preocupadas com a idade e com os anos de nascimento estivessem apenas a fazer contas à vida, como se tudo isto fosse uma espécie de lote de apostas e de probabilidades mais ou menos certeiras, cuja estatística necessita de constante actualização.
Talvez, enquanto penso que nunca vi ninguém por estas bandas com escaldões no rabo, andemos todos em busca de algo que talvez nem saberemos de onde venha mas que sabemos, ao certo, para onde vai. E talvez seja esta certeza que, por vezes, faça com que nos esqueçamos que o entretanto não é eterno, não dura para sempre e que há-de chegar o dia em que se terá de ir a um funeral que nos coloca no devido sítio, cara-a-cara com a nossa própria mortalidade e, para mim, acima de tudo, com a mortalidade dos outros cuja ausência seria, para nós, como se parte de nós também ficasse enterrado por baixo da tal terra movida pela pá eficiente do coveiro.
Há uns anos, ouvi dizer algo bizarro a senhora que, pelos vistos, sabia muito bem o que dizia. Disse ela para o Marido: Que vás tu primeiro que eu! Ele, meio surpreendido, fez cara de chocado e perguntou porquê. Respondeu-lhe ela que era por ela saber muito bem tomar conta dele e que sabia muito bem que ele, sozinho, não seria nada sem ela, que não seria capaz de superar a ausência dela e que ela não queria que ele sofresse dessa forma quando ela se fosse. Ele remoeu a questão e, encostando-se a ela, concordou. Ela, de lágrimas nos olhos, afagou-lhe a mão e sorriu.
Parece-me que tiveram, aqueles dois, um excelente “entretanto”.
E tudo isto porque passei três dias na praia, a entreter o meu entretanto, queimei a regueifa, fui a um baptizado e a um funeral antes de comer o que a Mummy Dearest criou, desde nascença, para nos alegrar os dias que vamos ignorando apenas representarem menos um que temos para cá andar, durante visita prolongada de minha Avó cujo luto pelo meu Avô se manifesta nas roupas pretas que ainda usa (e há-de usar).
Tudo isto porque me apercebi que, apesar dos apesares, prefiro que seja eu a ir antes de certos outros e outras irem (muito lá para a frente… daqui a muitos e bons anos…). Ficar sozinha no entretanto que deixarem não me agrada nada.
E pronto. Era só isto.