imagem: google
Recentemente tive que fazer uma viagem de comboio ate ao “longínquo”
destino de Aveiro. A primeira hora da viagem foi passada a dormir com a cabeça encostada
à janela; a segunda, com a cabeça enfiada nas memórias que os sítios que ia
passando me iam despertando. A partir de certa altura, à medida que as placas
das localidades iam aparecendo e desaparecendo, as memórias tornaram-se tão
densas que quase se atropelavam umas às outras para serem sentidas e sorridas
como deve ser. As más, as que invertiam os sorrisos, acabaram por ganhar força
suficiente e lá me tive de render ao seu poder, aceitante do castigo que me
aplicavam, submissa e de nó na garganta por serem ainda tão fortes. Fiz a única
coisa que podia fazer. Peguei no telemóvel e marquei um número que há algum
tempo não marcava. Atenderam-me rindo, com boa disposição. Há mais ou menos um
ano que não falávamos. Em seis anos, e ainda que tenha havido sempre contacto
por este motivo ou aquele, nunca houve aproximação. Não se aproxima o que tanto
se fez por afastar.
A conversa decorreu dentro das normais formalidades
estabelecidas para tais coisas, com certos assuntos a serem graciosamente
evitados e outros a gritarem para ser abordados. A confiança e à vontade
estavam lá mas, por baixo delas, uma mágoa pronta a vir à superfície e mostrada
através do uso de certas palavras, de certas observações, de certos tons. Vesti
cada uma das carapuças atiradas na perfeição.
Despedimo-nos. Respirei fundo. Senti-me mal. Mal e
confusa. Meio injustiçada, talvez.
Por mensagem, disse o que não consegui dizer com a própria
voz. Pedi desculpa. Valia o que valia, disse eu, mas pedia desculpa. A eu de
hoje pedia desculpa pela eu de há uns seis anos atras, assumindo a culpa e as consequências
de tudo o que acontecera em pleno. Que me sentia em dívida, que valia o que
valia. A resposta, também ela valendo o que valia, não tardou. Que havia menos frustração
quando hoje se olhava para trás. Que a havia em menos quantidade tanto pelo que
se perdeu como pelo que se poderia ter conseguido.
E, lendo aquilo, senti o coração partir. Ainda havia frustração e magoa. Seis
anos depois. Ainda havia todo aquele sentimento para com a pessoa que era e fui
e que, na altura, não tinha presença de espirito para prever que tal pudesse
acontecer. Sempre assumi que no presente apenas poderia haver total esquecimento,
indiferença. Mágoa e frustração, não. Tantos anos depois, não. Tive que viajar
para longe para descobrir que, afinal, ainda estava muito perto do sítio que
com tanto esforço tentei escapar e distanciar-me. Fugi porque me andava a
perder num mundo que me tinha sido imposto e lá estava eu, mais uma vez, a ser
responsabilizada por tal acto de desobediência civil por ter arruinado planos
alheios.
Em nova mensagem, referi que dava muito bem para sentir
que ainda não se tinha chegado a um sítio de paz em relação à situação mas que
esperava que tal pudesse acontecer no futuro. Que entendia perfeitamente.
Pertence ao passado, disseram-me. Sem castigos para ninguém.
E eu, sentindo-me castigada, devolvi que assim, ao menos,
esse tal passado ficava um pouco mais limpo. Pedi desculpa pelo desabafo.
Despedi-me.
Aquelas palavras queimaram a frágil ponte que ainda nos
unia, deixando-me sozinha numa carruagem a viajar de volta para onde tinha
vindo, quase como se me expulsassem dali, daquele território onde deixara de
ser bem-vinda e onde dantes era tão acarinhada. E talvez seja melhor assim com
a tal ponte queimada em definitivo, sem espaço para mais visitas de cortesia de
quando em vez. Vidas refeitas não devem receber visitas do passado que as
obrigou a refazerem-se.
Sou, agora, um capítulo encerrado em mim própria. Naquele
momento, tive que me perdoar pelo que, demasiado jovem, fiz quando não sabia que
mais fazer.
Talvez o meu telefonema tenha servido para permitir que
se desse a última estocada em algo há muito moribundo, para se afirmar uma
espécie de “estás perdoada, pertences ao passado, não apareças por cá novamente
que prefiro não pensar mais nisso sequer”.
Precisei limpar o meu nome junto dele, junto de mim.
Pensei que estava a fazer o certo, o correcto, pensei que estava a ser adulta e
crescida, assumindo a minha culpa, pedindo desculpa, mesmo valendo apenas o que
valesse. Mas parti o coração a mim própria por ter percebido, de forma tão
crua, ate que ponto parti aquele outro coração. Eu sabia que o tinha feito,
apenas nunca me tinha apercebido que os efeitos pudessem durar até hoje.
Há que saber viajar. Ter cuidado com os sítios que se
visitam. Cuidado com as pontes que se queimam. Cuidado com os companheiros de
viagem que vamos deixando pelo caminho para se desemerdarem sozinhos em território
desconhecido. Cuidado com as memórias que implantamos nos outros. Muito
cuidado.
Há viagens que só se fazem uma vez. Há sítios que nunca
mais se podem visitar.
Há que saber viajar.
10 comentários:
Que dor...
De quem?
De quem partiu o coração a ela própria.
E a outra pessoa. 2-0.
Dor a dobrar...pior ainda.
É sempre. Há quem pense que só sofre quem vê uma relação terminar "contra vontade". Quem a termina, penso eu, acaba por sofrer mais... Mesmo sabendo que está a fazer o que "deve".
Estes 2-0 já têm muitos anos... Não me frustram mais. A mim, hoje, não.
Não percebo essa atitude das pessoas de "quem acaba sofre sempre menos" é algo que me ultrapassa. Já passei por isso (terminar) e é uma sensação horrível e sofre-se mesmo mesmo muito.
Provavelmente porque aí 90% das relações são terminadas porque a pessoa encontrou outra pessoa...
(Quase) Ninguém termina uma relação para ficar sozinho...
amores, desamores... whatever... são os pontos de ruptura, aqueles que nos pedem uma atitude, que ajudam a determinar a pessoa que seremos (mais do que aquela que somos naquele momento!)
:)
ahhh e gostei do "refresh"!
Beijoka
Amanda,
Concordo contigo. Ajudam a determinar a pessoa que seremos e a forma como somos lembrados ou tratados daí em diante. E cresce-se, sim. Muito. Muito mesmo.
Obrigada pelo comentário.
:)
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