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Todos tínhamos vinte valores, sim, disse-nos ela. A partir dali e até final do semestre seria apenas uma questão de ir descontando, acrescentou.
Na altura, apreciei o laivo de humor e sorri-lhe, consciente de que com ela as coisas seriam muito mais complicadas do que simples contas de subtracção.
Apesar de muitas vezes ter repetido a outros o que ela nos disse, penso que só agora começo a acreditar que, de facto, as coisas por vezes são mesmo tão simples quanto uma conta de subtracção sobre um total à partida garantido.
Passamos a vida a descontar coisas. Vivemos em quase permanente desconto.
Vamos descontando inocência a cada curva mal calculada; confiança a cada passo mal dado. Descontamos curiosidade a cada lição aprendida da maneira mais difícil; fé a cada salto mal aterrado. Descontamos doçura de cada vez que alguma amargura nos invade; paixão de cada vez que as mesmas nos partem mais um pedaço do coração.
No entanto, como nada na natureza de perde e tudo se transforma, o que se perde é invariavelmente substituído por aquilo que, com mais força e determinação, causa tais perdas.
A gentileza vê-se substituída pela frieza que aos poucos lhe foi destruindo a vontade de existir; a compreensão pela obtusidade com que terá sido confrontada ao longo do tempo. As palavras vão-se de modo a acomodar o silêncio com que tantas vezes se depararam; a ternura de modo a fazer espaço para a rispidez com que tantas vezes terá sido recebida. A vontade de dar esvai-se nas recusas de receber e o próprio receber, cauteloso, vai-se encolhendo ou esticando ao sabor do que se acha não nos poder fazer mal. Até mesmo os actos, dantes tão simbólicos e representativos e valorados como sendo o tudo por oposição ao nada, vão desaparecendo, substituídos por uma imobilidade teimosa mas muito mais segura. Até a felicidade que em tempos sentíamos de forma genuína pelos outros vai desaparecendo de modo a permitir que o cinismo e uma certa dose de inveja permitam novos olhares sobre os motivos de tal felicidade, denegrindo-os e rebaixando-os para níveis na nossa escala de “auto-comiseração” com os quais conseguimos lidar mais facilmente.
Vamos ganhando consciência destas pequenas grandes transformações à medida que vamos passando por situações que, qual dejá vu, nos transportam directamente para outros tempos e outros momentos ou outras pessoas, recordando-nos de imediato os maus resultados daí advindos. Os bons passam a ser atribuídos a uma boa dose de sorte e de “timing”, negando-se que alguma vez mais possam ser repetidos.
Depois, um dia, olhamo-nos ao espelho e perguntamo-nos “Mas, para onde é que eu fui? Quem é esta pessoa? Onde é que eu estou?” e as respostas vêm-nos à cabeça em catadupa, num frenesim de memórias de pessoas e de momentos e de emoções tão fortes que preferimos fechar os olhos na esperança que o coração não sinta o que não vê.
Vamo-nos perdendo ao longo dos caminhos que fazemos. Pior, vamos entregando e vendendo ao desbarato pequenos pedaços de nós e, muitas vezes, nem nos preocupamos em os recuperar quando percebemos que o negócio correu mal. É mais fácil viver com aquilo que nos invade ou nos é entregue sem mais nem menos do que com aquilo que se conquista e depois se tem medo e terror de perder. É mais fácil culpar e responsabilizar alguém por algo que supostamente nos roubou ou que deixou diferente em nós, sem nunca olharmos para a possibilidade de tal ter acontecido porque deixámos. É mais fácil não perdoar quem nos matou as coisas que carregávamos tão perto do peito e do pensamento, que nos infligiu tanto sofrimento que nunca mais, a partir desse momento, fomos iguais ao que éramos ou ao que poderíamos ter sido. É mais fácil fazer uso desse escudo, desse capote sacudido, do que levantarmos a cara e não permitirmos que seja o que for de nós seja levado sem a mais pequena luta.
Dirão os mais racionais, possivelmente, que gato escaldado de água fria tem medo e que tudo se resume a algum mecanismo de defesa instaurado para nos impedir de voltar a sofrer o que se sofreu.
O problema é que nesses entretantos, no meio de tanto desviar de caminho e de olhar de modo a que o passado não entre directamente no presente, vamos esquecendo que, de facto, nada é igual: nem circunstâncias, nem pessoas, nem sítios, nem locais, nem ideias, nem contextos, nem mesmo nós, nada. Tudo evolui, tudo se transforma. Vivemos e aprendemos. Aquilo que nos horrorizava ontem, hoje fazemos na maior, sem medos e sem o menor pudor.
É o que estamos dispostos a viver com aquilo que aprendemos que faz de nós o que somos. Não somos nunca o que sobra do que a vida e os outros nos vão arrancando aos poucos ou o que sobra depois de perdermos batalhas que nem sequer lutámos.
Não podemos ter medo. Podemos ser cautelosos, podemos recorrer aos ensinamentos de modo a tomar melhores decisões, de modo a evitar o que é mau e incrementar o que é bom, mas não podemos viver a toque de medo, de receio, de puro terror do desconhecido.
Podemos não nos orgulhar do que vemos ao espelho, mas não podemos nunca fechar os olhos a nós próprios e fingir que o amanhã não virá, que não existiremos nele, que não nos afectará e que estaremos imunes a ser obrigados a viver de modo a que, daqui a uns anos, possamos olhar para trás e sorrir. Não será esse o derradeiro prazer e paz de espírito?
Então, porque vivemos como se não fosse?
8 comentários:
clap clap clap
estou sem palavras
Defendo mais que começas do zero.
Faz mais sentido.
Se acreditares que vais descontando, tens de defender que já nasces criada...
De qualquer forma, tá em pensado!!!
;)
Kapinha,
E isso é bom ou mau?
Egoiste,
Obrigada.
(e não, eu não tenho de defender algo no qual não acredito...)
Começar do 20 e depois ir descontando não é passar a mensagem errada? DO reforço negativo? Tipo, agora só pode ficar pior, porque comecei do melhor possível?
Eu sou contra a politica do reforço negativo.
Mas isso sou eu.
Eu prefiro começar do 10. Nos 50%.
Eu não confio para depois desconfiar. Eu não amo tudo para depois ir deixando de amar. Eu não sou totalmente feliz para depois ir sendo miserável aos poucos.
Mas isso sou eu.
Eu não vivo tudo para depois ir morrendo. Eu não conquisto para depois perder o que conquistei aos bocadinhos.
Mas isso sou eu.
É caso para dizer.... eu não sou a Republica Portuguesa. Sou eu.
Concordo com o equilíbrio. O que um sentimento deixa em aberto os outros sentimentos ocupam. Mas há coisas que nunca mudam na vida. Nós. E há lá coisa pior do que mudarmos por causa dos outros?
Estar apaixonado é muito melhor do que desprezar. Deixar de confiar por causa de alguém é uma vitória para esse alguém que não mereceu a nossa confiança. Deixar de amar porque alguém não nos amou, é uma vitória para esse alguém que não mereceu o nosso amor.
Sê tu. Não dês 20 a ninguém. Não dês 0 a ninguém. E principalmente não dês vitórias a perdedores.
É bom meu amor. Percebi o que quiseste dizer.
Tarado,
Entendo o que dizes, mas olha que o post não é tão "pessimista" como poderás estar a pensar.
A coisa dos "20", dentro do contexto de classificações, era mais piada que outra coisa qualquer. Acho que o que a professora queria dizer era que dava um enorme benefício da dúvida a todos. Partia do princípio que sabíamos tudo quanto haveria para saber e que, com base nisso, só nos descontaria os erros ou lapsos. Não é assim tão mal visto como tudo isso.
E acho que é por aí. Os benefícios da dúvida que damos e não damos com base no que vivemos. É a tal coisa, gato escaldado...
O que digo é que não nos devemos esquecer que nada é igual a nada e que, numa qualquer situação, o único dominador comum podemos ser apenas nós. Por isso, há que não deixar que a gentileza, por exemplo, seja substituída em nós por uma qualquer amargura porque, bem vistas as coisas, o que deu origem a isso não se repetirá dentro dos mesmo moldes.
Todos carregamos cicatrizes de batalhas passadas, mas essas não nos devem impedir de ganhar novas cicatrizes (por assim dizer).
Mais ou menos isso.
E eu sou Eu, tal como Tu és Tu. A porra está no que é que nos leva a ser o que somos: ou acagaçados e fazendo festinhas nas cicatrizes, olhando o passado como uma ameaça constante, ou "esperançosos" e confiantes que sentir e viver é sempre melhor do que nada sentir e nada viver, por muito mau que seja.
Acho que é mais ou menos isso.
K,
:)
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