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Diz-se que não se pode escolher a família (nem é uma questão de poder… não conseguimos mesmo. Ponto final). Há quem acredite que são os filhos que escolhem os pais… Isto no sentido cósmico da coisa que diz que são as almas por nascer que escolhem de quem querem nascer e vir para o mundo. Tudo muito bem.
Mas, de qualquer das formas, não se pode, ou consegue, escolher a família.
A minha, pequena, maneirinha e cheia de personagens dignos de nota, está quase matematicamente dividida ao meio, estando metade cá e a outra metade, lá.
Durante muitos anos, não tive a companhia dos meus Avós Paternos… e depois a coisa trocou-se e deixei de ter a companhia dos Maternos. Apesar disso, tenho a sorte de ter os meus dois avôs e avós ainda vivos. Cheguei até a conhecer e a conviver com duas bisavós, uma de cada “lado” da família. Avó Velha. Assim eram e são ambas chamadas por nós, os bisnetos.
Ao que parece, a minha família é tão bem balançada que até nas maleitas conseguimos dividir o mal pelas aldeias para que, no final, tudo permaneça dentro de um, de certa forma, justo equilíbrio.
Por um lado, tenho uma Avó que sofre da Doença de Alzheimer; por outro, um Avô com um tumor no cérebro e que tem vindo a perder muitas das suas faculdades motoras devido a isso.
Na prática, significa que tenho um Avô a sofrer os horrores de quem não entende bem o poder destrutivo de uma doença como a doença de Alzheimer e que teima em lutar contra ela como se a força de vontade, pura e dura, conseguisse ultrapassar tudo para salvar a existência da sua companheira de vida de mais de 50 anos; por outro, tenho uma Avó que sofre os horrores de quem vê o companheiro de vida, também de mais de 50 anos, reduzido a uma vaga lembrança do que já foi e incapaz de fazer seja o que for sozinho.
Mais. Por um lado, existe uma espécie de tranquilidade forçada em que, às tantas, se tem de confiar no tal poder destrutivo da doença para se poder ir vivendo os dias, de forma mais ou menos normal, sabendo-se que (confiando-se que) daí a minutos ou a horas, o tal episódio de falta de memória terá sido devidamente esquecido de modo a não causar mais dor e incompreensão em quem não aceita ou entende que tal assim seja (a mais pura das ironias, esta). Por outro, vive-se numa espécie de aflição resignada em que cada movimento é testado e fortalecido como que se se tentasse fazer com que o corpo se lembre, sozinho, do que é capaz de fazer sem auxílio do cérebro.
Por um lado, vê-se a pessoa desaparecer aos poucos deste mundo, deixando para trás um corpo ainda saudável e ainda com saldo positivo em termos de anos de vida. Por outro, vê-se a pessoa a deixar de poder participar activamente neste mundo, confinando-se os seus dias a poucas paredes, um tecto e conversas tidas em torno do assunto da força, da recuperação, do voltar a ter o que teve e foi.
Por um lado, vê-se alguém a perder o seu próprio testemunho de vida agravado pelo facto de haver momentos em que sabe perfeitamente que tal lhe está a acontecer; por outro, vê-se alguém a agarrar-se a isso pois são as únicas coisas que restam: as memórias.
Em ambos, olhares vazios.
Por um lado, olhar que já não reconhece, que já não identifica, que já não processa; por outro, um que se fecha exactamente por ainda conseguir fazer isso.
Não sei, sinceramente, o que é preferível. Desaparecermos em vida, passarmos a ser só corpo; ou desaparecermos em vida, passarmos a ser só mente.
As quatro pessoas que deram vida às duas pessoas que me deram vida a mim estão vivas. Os meus Avôs e as minhas Avós estão todos, neste momento, a sofrer o que é, para todos nós, inevitável. Os meus Pais estão, neste momento, a confrontar-se com essa tal inevitabilidade e a terem que aprender a lidar com isso de forma minimamente digna.
Eu, que estou no final desta linha, vejo isto como uma espécie de pirâmide em que os Reis e Rainhas aos quais sempre prestámos homenagem e aos quais sempre devotamos o maior respeito e carinho possíveis, se estão agora a preparar para deixar que os Príncipes e Princesas assumam os respectivos tronos. Uma sucessão causada pela ordem natural das coisas mas que, agora, parece tudo menos natural.
O que sinto e tenho dentro de mim em relação aos meus Avôs é um misto de amor às pessoas que são, de admiração pela vida que levaram e levam e de profundo agradecimento por me terem dado os Pais que tenho. Foi pelos certos e errados deles que os meus Pais se criaram, que os meus Pais aprenderam a ser gente, que os meus Pais aprenderam a ser Pais.
Não escolhemos, de facto, a nossa família. Apenas podemos esperar que cada uma tenha sido anteriormente bem criada e amada para que também nós o sejamos.
Em honra daquelas quatro pessoas que tenho a sorte de ter na minha vida, espero um dia ser digna de semelhante sentimento por parte dos meus netos.
11 comentários:
Bela homenagem.
E sentimento.
chOURIÇO
Lindo...
E prontes, metes a malta quase a chorar com estas merdas que escreves melher!
É uma situação muito complicada e sei dar-lhe o devido valor e compreensão, porque já passei pelo mesmo e infelizmente já na tenho nenhuns dos meus avós! Mas a perda deles, pricipalmente dos paternos, que foi quem me criou, foi a pior dor que alguma vez poderia ter sentido na minha vida! E vê-los sofrer só nos faz sofrer também, ao ponto de preferirmos que deixem a terra em prol do descanso e do fim do sofrimento fisico e mental deles!
Mas, infelizmente, o ciclo da vida é mesmo este, nascemos, vivemos e morremos...com mta pena minha sofremos! Quase sempre durante toda a nossa vida o que mais nos acontece é sofrer e isso quando já somos velhos ainda custa mais a suportar, porque as forças não são as mesmas e as fraquezas cada vez maiores!
E isto é a unica coisa que me assusta na vida, de morrer não tenho medo nem tão pouco me assusta, sofrer sim, tenho um medo terrível e nunca me permitirei tal sofrimento no dia em que tiver de passar por algo assim comigo própria!
Coragem e mt força é do que precisas neste momento, mas na será fácil, porque no dia em que eles deixarem de sofrer, tu vais pensar que afinal até nem era assim tão mau tê-los por cá mesmo nessas condições. Porque ao menos assim estavam cá...e se partirem, não sofrem, mas não estão cá e essa dor a ti te irá assombrar durante algum tempo, ao ponto de te tornares egoísta e preferires que estivessem cá, sofrendo, mas presentes para que tu não sofras com a sua partida e falta!
A vida é mesmo assim, dá e tira e faz sofrer quando tem de ser, e tal como não escolhemos a família, também não podemos escolher o tipo de sofrimento que queremos passar!
Temos que nos aguentar á bronca e mai nada, somos seres com muita força e estamos sempre a ser postos á prova!
Deus, ou não existe, ou é duma crueldade incompreensível.
(É mais uma frase de retórica porque eu acho que não existe mesmo)
Outro filme, ao qual nós, só podemos assistir e sem muito poder fazer. Por muita ajuda que se dê, por muito que se corra, são situações de dificil controlo. Curioso ler este belo texto hoje... porque também eu tenho situação parecida, mas com o meu pai, que ontem ficou outra vez no hospital... o problema, o coração que anda cada vez mais fraquinho.
Avós, ainda tenho uma que se vai aguentando com 86 anos, o meu pai mais novo que ela, já anda nesta vida à uns bons anos. Mesmo que seja esta a lei da vida, não é fácil e a esperança é sempre a última a desaparecer, mas custa.
Um Bj para Ti, menina senhora dona Me.
Obrigada, chÓRAS e g2.
Ainda bem que gostaram :)
NG,
Eu sei que este assunto te é sensível (acho que acaba por ser sensível para todos, mais tarde ou mais cedo).
Só te posso agradecer o comentário que sei que te deve ter custado deixar aqui.
Um beijo, my dear. Dos grandes.
Vespasiano,
Pois, também não acredito...
Be,
O meu Avó foi novamente internado no Sábado... Não sabemos se vai poder voltar para casa ou não.
Desejo fortes e rápidas melhoras para o teu Pai.
Não te vás abaixo, ok? Not yet.
Beijo.
Eu gostava de sentir parte disso que referes; mas como bem dizes, não se escolhe a família que se tem....
(e tu my darling, minha cereja com grande caroço, só poderás ser digna de tal sentimento ;])
K,
Minha banana sem caroço, não sejas tola :)
Tenho pena que não possas sentir o mesmo. Muita mesmo. Há algo de muito diferente nesta coisa de Avós e Netos. Diferente no sentido de bom.
Beijo-te, oh minha castanha mal assada.
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