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E era suposto o emprego ser o mais fantástico e compensador do mundo. O mais perfeito dos palcos para a correcta e devidamente reconhecida execução e aplicação de tudo quanto fosse talento inato, génio mascarado e capacidade extraordinária.
E os patrões seriam sempre seres visionários frente dos quais nos ajoelharíamos, feitos parvos e encolhidos perante a grandeza daquela entidade que, certo abençoado dia, lá decidiu dar oportunidade e gordo e rechonchudo ordenado a quem assim o merecesse – nós, claro está.
E o dinheiro daria para tardes nas compras e noites nos restaurantes e fins-de-semana em estalagens e hotéis à beira mar plantados.
E as viagens seriam feitas no mais lindo dos carritos, daqueles que são simultaneamente lindos e bons e fashion e maneirinhos e que, ainda por cima, seriam a nossa cara, mesmo ao nosso estilo.
E o amor seria algo de estupidamente belo, magnificamente arrebatador, cheio de tudo quanto nos fizesse pular e sorrir e rir e dar graças aos santinhos e ver borboletas por todo o lado. Seria, de facto, algo de tão bom, tão bom, tão bom que todos os médicos o receitariam devido às suas capacidades de regenerar células cerebrais, fazer crescer músculo e reduzir tecido adiposo. Seria o melhor dos remédios, a melhor das drogas. Seria o centro do mundo, do universo, de tudo. Nada mais existiria na presença do amor. Seria senhor soberano, capaz de transformar dor em prazer, mágoa em satisfação, a noite no dia, sal em açúcar, água em vinho. Um dia de chuva seria sentido como se o sol mais radioso nos estivesse a banhar a pele; uma noite fria como se mil cobertores nos acarinhassem o corpo, aconchegando-o e protegendo-o do mundo.
E o objecto do nosso amor? Ia ser o mais lindo, esbelto, inteligente, engraçado, sério, honesto, justo, brincalhão, simpático, charmoso, belo, honrado, sincero, compreensivo, sensível, sensual, amoroso, doce, gentil e pensado dos seres. Apareceria do nada, num belo e radioso dia de sol precedido por noite clara e amena em que a lua sorriria e as estrelas voariam como se asas tivessem, concedendo desejos e alimentando os sonhos de todos quanto levantassem os olhos para o infinito que é um belo e iluminado céu nocturno. A noite, sabendo do dia que aí viria, faria uma estrondosa saída de cena porque sabia, sábia, que a partir do dia seguinte, nunca mais seria a mesma, nunca mais a sua influência escura e sombria teria o mesmo efeito sobre os corações que com ela sofriam as auguras da escuridão. Ida a noite, viria o tal dia, radioso e doce, em que o céu resplandeceria e brilharia com a quente e confortante luz de um sol tão intenso e cheio de cor que os olhos chorariam de emoção perante tal visão. Chorariam de novo quando tal ser, enviado pelo amor e encaminhado até nós pela paixão, nos apareceria à frente enquanto executávamos um qualquer acto mundando, tantas vezes repetido, tantas vezes realizado, sem nunca nos apercebermos que sim, poderia ser precisamente ali que toda a nossa vida poderia mudar, de um momento para o outro, havendo o antes e o depois de tal momento em que o coração se renderia a olhos que nos sorririam cheios de calor e afecto e em que mãos se estenderiam até nós, convidando-nos a partilhar o resto da vida, o resto dos dias, o resto de todas as horas quanto haveriam a viver neste de repente tão belo mundo.
E seria fabuloso. As compatibilidades, as cumplicidades, as conversas, os segredos – tudo se coordenaria numa dança elegante e graciosa, salpicada por risos e risotas várias, em que as frases de um seriam acabadas pelo outro e em que, com apenas um olhar, toda uma noite de conversa profunda e reveladora seria tida.
E era suposto o sexo ser do tipo que se descreveria com palavras tipo terramoto e tsunami. Os orgasmos seriam carinhosamente apelidados de El Niño e as faces andariam permanentemente ruborizadas pela espécie de vergonha que se sentiria em ser possível ter-se tanto prazer, de uma só vez, com uma só pessoa, durante tantas e longas horas. As velas não teriam tempo de vida para testemunhar os preliminares, quanto mais o resto. Não haveria óleo corporal que resistisse, mola de colchão que sobrevivesse ou gritos de prazer que não se ouvissem num raio de três quilómetros. O sexo seria o culminar bíblico de duas almas que teriam passado milénios aos tombos pelo universo, numa desesperada busca uma pela outra – o sexo seria o milagroso encontro físico de seres celestiais que teriam aproveitado os milénios gastos a caminharem um para o outro para se tornarem tão conhecedores das artes do amor que até a luxúria se envergonharia caso assistisse a tal espectáculo. Os corpos explodiriam, os sentidos ficariam tão afinados e tão sensíveis que o mais leve toque seria o equivalente a ser-se abalroado por camião carregado com toneladas e toneladas de chumbo… mas no bom sentido. O sexo seria a libertação de almas, o dar a volta à lua e ao sol ao mesmo tempo. Seria tão perfeito que todos os orgasmos pareceriam terem sido escritos por Mozart, qual peça de música, qual sinfonia, qual obra de arte em que todos os instrumentos se interpelam para que o céu pareça, por um instante que seja, quase possível de ser inspirado.
Mas, não.
O emprego é trabalho. Do que dói e faz doer.
O carro? Em segunda-mão e a cair aos bocados. As revisões? Na oficina de um tio que também tem uma bela horta que de vez em quando vai desbastando para nos dar umas couves, batatas e cenouras.
As viagens de fim-de-semana? Até ao centro comercial olhar para o que não se pode comprar visto o ordenado ter tão cruelmente miserável.
O patrão? Um filho da puta mal cheiroso que não paga a segurança social ou horas extra mas que sabe exigir fins-de-semana e que se acha no direito de comentar tamanhos de rabo.
O amor? Um sacana rancoroso. Um bêbado ressacado. Um piquínhas vingativo. Um puto ranhoso e cheio de birras. O filho bastardo do demónio. Um ser intolerante, arrogante, seco, bruto, frio… vil.
O tal? Com peso, pêlo e colesterol a mais; cabelo, maneiras e higiene a menos.
O sexo? Qual sexo? O que se fazia no banco de trás do carro quando se era jovem e até se gostava das nódoas negras e lesões musculares na zona lombar ou o que se faz pela madrugada, a toque do despertador, no escuro e com pressa antes que as crianças (que precisam de óculos e aparelhos nos dentes e que comem que nem uns alarves e não estudam nada) acordem e antes que não se tenha tempo para tomar banho antes de se ir para o trabalho que dói e paga pessimamente e onde os colegas não valem nada e o patrão vai começar a vender o sangue dos empregados para ter dinheiro para comprar papel para a impressora? Ahhh, sim. Sexo.
A realidade é uma cabra cega que não tem o mais pequeno pingo de respeito ou compaixão por nada ou ninguém. Nem pelo que seria suposto ela ser.
Vaca sarnosa.
Não era suposto ser assim. Não era?
2 comentários:
Life is a bitch and then you die.
Mas confessa,lá pelo meio houve momentos, certo?
Ainda assim há momentos que compensam ter por cá passado.
Beijos,
Miau
Agora que disseste isso, Gata, deu-me vontade de dizer não, não, não!
Life isn't a bitch! Reality is!
Nós é que passamos demasiado tempo afastados da realidade, cozinhando lindas histórias para nos adormecer.
Acho que escrevia mais sobre o que é ter-se esperança e sonhos e o que acontece quando os largamos...
Por isso, não. Life isn't a bitch!
:)
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