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Há quem tenha a sorte de nascer no mundo dos sons, no mundo que se expressa por acordes e notas, por doces laivos de guitarra, de viola, de voz. Por fortes batidas que estremecem o ar, por suaves silêncios que suspendem a respiração, tornando-os quase violentos de tanto se querer continuar a ouvir e ouvir e ouvir. Por letras e poemas que, somos capazes de jurar enquanto cada palavra nos inunda o cérebro e o coração de memórias e sentimentos, foram escritos a pensar em nós. Há quem, e por simplesmente ter nascido com a inata capacidade de conseguir meter os outros a sonhar enquanto se deixam envolver por uma qualquer melodia ou toque de corda, consiga fazer com que se transponha o mundo do apreciar algo, para aquele outro em que o peito se torna demasiado pequeno para as emoções que surgem e em que os olhos se fecham de modo a que nenhuma delas possa ser perturbada pela visão quase dolorosa, curiosamente, de quem as puxou e com elas brinca como se fossem berlindes aos tombos numa palma de mão.
Dizem, e bem, que quando falham as palavras, é aí que surge a música. Dizem, e mais que bem, que quem consegue viver isso e trazer essa falta de palavras dentro de si com uma graciosidade e aceitação tal que por vezes se é capaz de escolher exactamente como e quando as mesmas devem falhar, são seres abençoados, superiores, que carregam o fardo de sentir tudo a um ponto tão minuciosamente delicado que a única forma de não enlouquecerem é permitir que a música saia e seja entregue ao mundo, ao universo e às almas de todos quanto consigam e desejem partilhar o bem-dito fardo.
Fado, expliquei-lhe, significa Destino. Fado, continuei, é amor ouvido, são corações partidos que gritam, são amores perdidos que não se calam e que choram por se encontrar. Fado, acrescentei, é a emoção e o sentimento em forma de som arrancado de sítios que por vezes se desconhece que se tem. E é tão forte que para o bem cantar e tocar, fecha-se os olhos, olha-se para dentro, rebusca-se o de mais doloroso ou o de mais doce e tranquilo, agarra-se e atira-se isso tudo cá para fora, direitinho a todas as dores e doçuras enterradas em quem o ouve.
Agradeceu-me a explicação. Disse que, como não era de cá, já conseguia começar a entender melhor o porquê daquele clima, daquele ambiente que, de um momento para o outro, saía do registo de palmas e de cantoria geral para um silêncio tão profundo que quase parecia que ninguém respirava. Entendo-vos melhor, disse, enquanto me passou a mão pela cara e me sorriu. Até para o explicar se emocionam, acrescentou. Vê-se nos teus olhos.
Daquela mulher, quase que senti uma certa pena por ela, já com alguma idade, nunca antes ter tido a experiência do que é, por uma noite, calar as palavras que há em nós e permitir que os abençoados, os Destinados, os Fadistas, nos invadam as almas sem o mais pequeno pudor ou respeito pelas consequências de tal acto. Correm lágrimas? Que corram. Alegram-se corações? Que sorriem. Contorcem-se caras, incapazes de suportar, sem o mostrarem, o devastador peso de tudo quanto de repente se sente a mexer em nós? Que assim seja.
Disse-lhe que sentia que deveria agradecer a algo ou alguém a sorte absolutamente avassaladora de, de vez em quando, me encontrar em sítios onde tudo quanto se ouve é para se sentir. Que me sentia tão grata, mas tão grata, que só me apetecia gritar um enorme Obrigada a quem o quisesse fazer seu.
Tenho uma das sortes mais bonitas que se pode ter: um grupo de amigos que se expressa por, para e pela música. Um grupo de amigos que, em noites de copos, fazem as delícias dos presentes ao trazerem certas canções, certas músicas, certos cantares para a mesa como convidadas de honra. E depois, como se isto não bastasse, tenho a suprema das sortes mais bonitas que é, de vez em quando, poder vê-los em contexto de “actuação”, em que puxam ainda mais pelas vozes e pelas mãos, pela arte, mostrando exactamente até que ponto a música vive neles. E é aí que eu, recostada num enorme e confortável sofá, numa espécie de adega mal iluminada e com lareira a arder ali ao lado, me limito a olhá-los com ar embevecido, com peito a explodir de orgulho e vaidade e enquanto luto por encontrar outra palavra que não “Obrigada” para lhes dizer, me limito a deixá-los inundar-me com todas as dores e doçuras deles, certa de que encontrarão as minhas e que juntas se fazem ouvir e provam que nestas coisas do Destino, há mesmo quem nasça Fado.