Isto não tem andado fácil.
No essencial, tem estado tudo na mesma (tirando o facto
de haver pouca coisa que me apeteça, incluindo visitas mais assíduas aqui ao
estaminé). E é precisamente esse o problema. Tudo na mesma.
Quer dizer… Não. Não está tudo na mesma.
O que dantes eu achava completamente impossível começa
agora a tomar a forma de algo bastante real e, infelizmente, quase inevitável.
Emigrar. É-mí-grar. Só de escrever a palavra fico meio
enjoada.
E porque não o quero fazer? Porque já o fiz.
Fui, aos quatro anos, levada deste país para outro pelos
meus pais. Um daquelas que fica muito longe. E foi esse país que me fez e criou
quase como se fosse uma Mãe adoptiva simpática e benevolente que trata de igual
forma todos os seus filhotes, sem olhar a cor de pele, idade ou proveniência. E
andámos, os quatro (tenho uma irmã), durante uns belos anos, a chamar “casa” a
Portugal e a fazer casa por lá. Nem dum sítio, nem doutro. Sempre ali ao meio.
Voltámos, uns dez anos depois, porque aquela, em verdade,
não era a nossa casa. Era de cá que éramos, que sempre fomos. Os primeiros
tempos no país deixaram isso bem claro – quatro alminhas, duas delas
minúsculas, à aventura num país onde não se falava a língua, não se tinha onde
viver, não se tinha trabalho, não se tinha nada a não ser umas garantias de
ajuda por parte de instituições sociais. Fomos, vivemos e quando chegou a hora,
voltámos. Dissemos adeus à Mãe adoptiva, agradecemos a hospitalidade, pegámos
nos certificados de nacionalidade e, de novo com as vidas empacotadas em meia
dúzia de malas de viagem, voltámos para a Mãe biológica de braços abertos e
cheios de saudades do que era bom. A comida… ahhh, a comida. Nada se compara, vos
garanto. De resto? Há pouco mais que possa dizer ser melhor cá do que lá. Mas
viemos e o objectivo era ficar. De novo emigrantes mas desta vez, no próprio
país. Habituei-me a isso, de não ser de lado nenhum em concreto. A minha
identificação cultural, de valores, princípios e, de certa forma, social, mais
parece uma manta de retalhos. Vou buscar um pouco daqui, um pouco dali e lá me
vou mantendo minimamente integrada onde preciso estar.
Nunca foi, até há pouco tempo, uma opção plausível voltar
para a Mãe adoptiva com uma expressão de “mea culpa” na cara. Nunca foi, não
era e, de certa forma, continua a não ser. Mas é. E isso deixa-me doente.
Os meus pais voltaram para cá depois de dez anos num país
que, ao menos, nunca nos cortou as pernas, na esperança de as filhas (e eles
próprios) puderem fazer algo mais no país que os viu nascer e aprender a andar
e falar. Na altura, há 30 anos, Portugal não era o melhor dos anfitriões para
quem quisesse construir vida e, ainda por cima, tivesse duas crianças pequenas.
A pensar em nós, foram e depois de novo a pensar em nós, voltaram. Formamo-nos
cá. Começámos a trabalhar cá. Aprendemos as coisas da vida cá. E, durante tudo
isto, sentíamos que era por cá que tínhamos de estar, na nossa língua, na nossa
terra, com a nossa gente, tradições, cultura, família… tudo o que lá nos
diferenciava, cá abraçava-nos. Emigrar? Outra vez? Não. Custa demasiado. Dói. É
duro. O lado emocional da coisa, para quem nunca experimentou, é dolorosamente
cruel.
Desde que cá estou que sempre ouvi, sempre me perguntaram
porque não voltava. E eu sempre respondi que não, quase de mão no coração e de
lágrimas nos olhos enquanto imaginava a bandeira portuguesa a flutuar numa
gentil brisa e ouvia o hino baixinho nos ouvidos. Sou Portuguesa, pertenço cá,
daqui ninguém me tira. Finquei pé até ficar com a leve ideia de que ou era
muito mais Portuguesa que o resto dos Portugueses ou, então, havia realmente
alguma razão para cá não dever estar. E ainda que essa parte racional da
questão sempre tenha prevalecido na famosa contagem de prós e contras (o melhor
sistema financeiro do mundo, segurança social, edução, saúde… é o que se
quiser), na parte emocional, nada se compara. Nada. Sei bem o que é não se ser
do sítio onde se está e tal, acreditem, não é das melhores sensações que se
possam ter.
E agora, a pensar nos meus pais que me sustentam, na
família que se preocupa, nos amigos que não entendem por que carga de água
ainda cá estou quando tenho uma saída tão fácil na mão, começo a pensar de
forma muito séria sobre ir-me embora.
Penso em mim e no que têm sido os últimos dois anos e
meio. No que perdi, no que perdi de mim mesma por ter levado com tantos nãos,
tantas negas, por me terem feito sentir que não sou suficiente e não presto.
Penso no dia em que me inscrevi para receber o subsídio de desemprego e no dia
em que o mesmo acabou. Penso nas contas e no raspar o tacho para ver se não
tinha de pedir ajuda e sobrecarregar mais alguém. Penso em mim e sinto-me
empurrada contra uma parede, quase como se testassem esta minha crença em ser
Portuguesa e em tudo o que isso significa e representa. Penso em tudo o que
vejo no dia-a-dia, nas notícias de mais desemprego, mais falências, mais fome,
mais miséria, mais de tudo aquilo que não devia existir sequer. E penso e penso
e penso.
E depois penso nos filhos que ainda não tenho. Penso
neles e tento imaginá-los cá. Penso neles e no tipo de Mãe que teria de ser
para que a vida deles fosse minimamente decente. Penso neles e, de coração a
arrebentar, imagino-os a crescerem nos sítios onde eu cresci, a receberem a
educação que eu recebi, a terem as experiências que eu tive e percebo que nenhuma
das que fazem real diferença, foram cá. Eu cheguei (voltei) cá já feita. E
ainda que isso me sossegue, deixa-me absolutamente revoltada sentir que, trinta
anos depois, Portugal está em exactamente o mesmo sítio, o que levou a que um
casal com vinte e dois e vinte e seis anos com duas filhas deixasse tudo para
trás para lhes garantir mais do que a semana seguinte.
Destrói-me por dentro conhecer a dor que foi para os meus
pais tomar esta decisão. Corrói-me pensar constantemente nisto. Mata-me pensar
que a única maneira de eu me manter Portuguesa é noutro país. Cá não somos
nada. Nada. Nem Portugueses. Somos o “povo”. Somos outra coisa qualquer que
apenas conta como estatística, como fonte de rendimento para uma classe
soberana gulosa e viciada que deixou o vício ir longe de mais. E isso, para
quem pertence a um país de alma e coração, não chega. É vergonhoso. É algo
impossível de explicar por palavras.
Se me for embora, ao menos terei oportunidade de voltar a
adorar o meu país. Talvez, se estiver longe de quem o mata e sangra, possa
voltar a vê-lo como dantes via, como a Pátria-Mãe que me deu o nome e a raça
que mais nenhuma do mundo poderia dar. Mas, acima de tudo, se me for embora,
poderei ensinar aos filhos que um dia espero ter o que realmente é o meu
Portugal, sem ter que me referir a quem o destruiu ao ponto de passar a ser
apenas uma história de embalar para criança dormir.
Nunca serei capaz de descrever as saudades que tenho do
país que nunca cheguei bem a viver. É uma saudade visceral, doentia. Tem sido
ela a que me tem mantido cá mas, ironicamente, é provável que seja precisamente
ela a que me faz ir embora. De novo.