(o mais comprido post de sempre no OMQ. Aguentem-se.)
Precisava mudar de roupa. Liguei para Mummy Dearest para
ver se iria estar em casa. Disse-me que não. Então mudo de roupa na estação de
serviço e aproveito para comer qualquer coisa, disse-lhe eu. Então, mas foste a
um baptizado e não comeste?, perguntou-me ela. Saí quando foram para o almoço
para poder chegar a horas do funeral da tua Madrinha, irmã de Mummy-Mor, minha
Avó (que está cá de visita após muitos anos de ausência), mas a quem eu e minha
irmã também sempre chamámos de Madrinha, vá-se lá perceber porquê, mas que, de
certa forma, sabia bem e elevava o papel dela para um nível muito mais nobre
(penso eu de que…), respondi-lhe eu, mais coisa, menos coisa. Ahhh, respondeu-me ela. ‘Tá bem. Então, vá.
Anda.
E lá fui.
Tendo estado fora de casa durante uns dias, tinha mala
com roupa no carro. Parei na estação de serviço que ficava a caminho para
trocá-la, à roupa, e aproveitar para comer qualquer coisa, como tinha dito que
faria. Entrei no local feita femme fatal amolgada e de pé cagado com mochila às
costas e saí de barriga cheia, calça de ganga e sandaleca rasa e limpa, qual
versão feminina, e muito mais atrapalhada na mudança de vestimenta, do Super
Homem.
Ainda cheguei a tempo de ir à Igreja, beijar a minha Avó
e Mãe e família da Madrinha.
Sendo o primeiro funeral de alguém chegado a que ia,
estava algo apreensiva com a minha reacção a tudo aquilo (os comichões ainda
não tinham começado mas temia que o alívio das calças de ganga levassem a pele
a pensar que estava livre… o que não estava, apesar da falta de creme se sentir
cada vez mais…). Andei com a devida calma e sem dores nos pés, tentando
absorver ao máximo o que me parecia mais importante em todo aquele evento. O
padre que falava para esta comitiva tinha ar mais trabalhador que o anterior.
As vestes eram mais pobrezinhas, não tão vistosas e pesadas. Mas não havia
leveza nas suas palavras. Era um mestre de cerimónia, puro e simples, de
discurso estudado e decorado, com timings e ritmos bem definidos. E tinha
agenda a cumprir.
Falava-se de mais uma viagem, de um abandono e, em
simultâneo, de mais uma entrada no tal reino (talvez para zona VIP?). Mas,
desta feita, parecia-me que o discurso não era dos mais convidativos e que Deus,
em vez do Director de Recursos Humanos a quem se fez prova de aptidão na parte
da manhã, era referido mais como sendo Mordomo uma espécie de centro de
acolhimento de fim da linha. A diferença de tom foi violentamente entristecedora;
a diferença de manifestação de fé, tristemente violenta. Disse o Sr. Padre
quando terminou a Missa: Convido-vos a acompanharem a Madrinha até ao
Cemitério, oferecendo em troca o sacrifício do calor que se faz sentir.
Pareceu-me, de alguma forma, incomodado com tudo se estar a passar naquele dia,
com aquele calor, àquela hora. Para Padre, deve ter os fins-de-semana bem
planeados e não deve gostar de surpresas, mesmo que seja Deus himself a chamar
até si mais um elemento do rebanho.
Fui para o cemitério, onde Mummy Dearest me pôs a par dos
acontecimentos das últimas 24 horas desde que tínhamos sabido do falecimento da
Madrinha. Lembrou-se que eu nunca tinha ido a funeral de alguém da família (ao
do meu avô, há dois anos, não pôde ir. Não é fácil apanhar um avião para o
outro lado do mundo e chegar a tempo da cerimónia. De resto, tenho tido sorte…
e a malta bons genes…). Eu anuí. Não me largou mais. Andava entre mim e a minha
Avó mas esta, como pertence a quem tem outra idade e mentalidade, estava muito
melhor preparada para os acontecimentos do que eu.
Eu só queria mandar aquela gente toda à merda. Estava
estupefacta com aquilo e a minha cara de parva, a minha impaciência, a minha
incredulidade, mostrava-o bem.
Ele era beijos e abraços entre gente que já não se via há
anos (sempre com o lamento de ser “nestas circunstâncias” em pano de fundo). Ele
era velhotes e velhotas a compararem idades e anos de nascimento e falando de
sei lá quem (“que Deus tem”) como se tudo aquilo fosse uma grande e enorme
fanfarra, um encontro de amigos, um bailarico sem música, um convívio sobe 32
graus de calor e sem as minis para refrescar.
É sempre assim?, perguntei.
Sim, é., respondeu Mummy Dearest.
Mas isto é uma falta de respeito!, proclamava eu,
indignada enquanto olhava para o caixão e ouvia as conversas do lado.
Há pessoas que só se vêem nestas alturas, explicou.
E isso não deveria servir para que se começassem a ver
noutras?, perguntei.
Não houve resposta. Apenas um sacudir de ombros e olhar
ternurento.
Estava fula. Zangada. Uma pessoa a ser levada para a
terra, coberta dela, e outras a recordarem os bons velhos tempos e a fazerem
contas às idades uns dos outros.
Lembrei-me de dois funerais a que fui quando muito nova.
Foram ambos de gente muito jovem. Acidentes. O ambiente não era aquele. Havia
pesar. Havia dor. Havia silêncio. Havia mãos e braços dados. Corpos amparados e
abraçados. Havia respeito por o que tinha havido e pelo que nunca mais poderia
haver.
Aqui? Nem uma coisa, nem outra. Apenas a família mais imediata
estava lá de corpo e alma enquanto os restantes faziam a sua presença notar-se
cumprimentando tudo e todos sem a mais pequena consideração pelo motivo que ali
as levara (pareceu-me).
(As rogas e rezas e
orações da manhã… as que pavimentaram o caminho para que pequeno ser humano
fosse simbolicamente aceite em algo supostamente muito maior do que tudo o que
algum dia compreenderá, segundo dizem, pareciam fracas frases feitas de
vendedor de banha de cobra. Roga-se “olhai por nós”, reza-se “santificado seja
vosso nome”, apela-se à bondade dos santos e santas e renuncia-se a satanás. E
depois, um dia, quando se roga que uma vida seja salva por mais uns momentos,
que seja prolongada por mais uns tempos, que dure mais um bocadinho que seja, a
única resposta que se ouve é “estava na sua hora”. Não compreendo tais lógicas,
tais formas de pensamento, tais crenças em algo que, espremido e puxado ao
limite, não faz o que se pede (e se roga, se ora, se reza, se suplica, se pede
de joelhos) que se faça, mesmo depois de se ter cumprido com tudo o que é
necessário fazer para se ter direito a tais pedidos. Chega a nossa hora e
pronto. Nada mais a dizer. Contrato expirado. Venha outra alma, outro filho ou
filha, para ocupar o lugar vazio deixado por quem entrou num reino e se viu,
uns anos mais tarde, a ser levado para a cave do mesmo sem direito a coffee
break pelo caminho).
Desliguei os ouvidos e olhei a campa tal como tinha feito
quando baixaram o caixão e eu, de frente para o mesmo, conseguia ver
perfeitamente quem lá estava dentro. Agradeci à memória que tenho da Madrinha,
agradeci e senti-me grata por a ter conhecido, enviei-lhe um enorme beijo,
abracei-a e despedi-me. E não teria sido preciso padre e discursos e flores
para o fazer. Aliás, tendo por base o que se estaria a passar à minha volta
naqueles momentos, duvido que essas coisas sequer interessassem. Estava feito,
a hora chegou, apareceu gente para ver e pronto. Fim.
Fui ao meu primeiro “verdadeiro” funeral numa tarde que
seguiu uma manhã leve e bela, onde uma criança foi baptizada e aceite como
Filha de Deus para tomar o lugar de outra Filha de Deus que perdera lugar aqui,
mas ganhara ingresso directo no Além.
O contraste entre os dois, mesmo com episódio de mudança
de vestimenta pelo caminho tipo interlúdio a meio do espectáculo, deixou-me
perplexa e meio ressentida com uma data de coisas que há muito aprendi a
resvalar para a tal dita couraça da minha indiferença. Mas fez-me diferença. E
acho que sempre fará.
Saímos do cemitério ainda a campa não estava devidamente
tapada e posta como deve ser. Acompanhei a minha Mummy e sua Mummy até casa. A
vida teria o início da sua continuação logo ali. Banhos tomados (ambas passaram
a noite a velar o corpo e não pregaram olho) e energias repostas, a vida tinha
de continuar. Lá mudei de roupa mais uma vez. Calções e chinelos. Estava calor.
Besuntei-me de novo com creme. Estava nova.
Fomos ver da bicharada, ver se tinham água e comida.
Recolher os ovos. Ver as crias mais recentes. E enquanto eu andava de capoeira
em capoeira a chamar Assadinho a um pato, Fricassé a uma galinha e Grelhadinha
a outra, pensei, mais uma vez, no contraste que era estarmos ali, eu de
regueifa refrescada e pézinho ao léu, a ajudar a que se criem bichos que,
depois de mortos, nos ajudarão a manter-nos vivos por mais uns tempos. Tudo é
vida e morte, bem sei, mas vir de um funeral de quem perdeu tal batalha e
enfiar-me num sítio onde, logo à partida, a batalha também estaria perdida,
pareceu-me no mínimo, irónico e meio parvo, até.
Mas vá… a vida continua e para que tal aconteça, a malta
precisa de comer.
Voltamos para casa para tratar da janta. Peguei numa faca
para descascar cebolas e reparei que a mesma estava tão bem afiada que quase ia
cortando a cebola ao meio sem querer.
É justo que assim seja, pensei eu. Com tudo o que há para
fazer, deve haver muito pouca paciência para coisas que não funcionem bem e
como deve ser.
Lá estávamos nós, as três, a tratar da janta e a falar de
nada em particular, mas com uma espécie de pressa difícil de decifrar. Ao meu
lado, estava a minha Mãe a arranjar a galinha. Vi-a, pelo canto do olho, a
atirar um pedaço de carne para dentro de um alguidar mas a falhar, fazendo com
que o mesmo aterrasse dentro do lava-louça. Respeita a comida, disse-lhe eu,
toda imbuída do espírito de gratidão que deveremos ter para com bichinhos que
sacrificam as vidas para nós enchermos o papo. Olhei-a e vi que tinha um
facalhão enorme, maior que o braço dela, na mão e que estava, de cada vez que
deixava cair o mesmo sobre a carcaça da bichana, a cortá-la em pequenos pedaços
para guisar. Ri-me. Respeito é uma coisa, eficácia e eficiência são outras.
Cortei a cebola e ela a galinha, ambas com facas demasiado produtivas para o
requerido mas, de certa forma, perfeitamente adequadas à falta de paciência
para certas sensibilidades.
Comemos, e, mais tarde, quando fui para lavar a louça,
cortei o dedo na tal faca demasiado afiada. Justiça poética, pensei. E dei por
terminado esse dia, ainda com a regueifa a arder e com dedo a pulsar.
Existe a forte possibilidade de não mais ver a minha Avó
depois de ela voltar para o outro lado do mundo. Existe a forte possibilidade,
tal como no caso do meu Avô, de não conseguir estar presente quando chegar o
dia dela. Em ambos os casos, custa-me mais pela minha Mãe, saber que ela, muito
provavelmente, não voltará a ver a sua Mummy Dearest e que, em relação ao Pai,
apenas visita a cemitério onde ele jaz poderá valer como tal.
Sei que nunca baptizarei nenhum filho ou filha meu, caso
os venha a ter. Prefiro que suas almas fiquem entregues a eles próprios, sem
lobbies daqui ou de ali que lhes atormente as decisões e lhes assombre os
pensamentos.
Sei que, a não ser que expressem vontade em contrário,
nunca deixarei entregue a nenhum Padre, dentro de nenhuma igreja, a tal viagem
que os meus pais um dia terão de fazer para onde quer que seja que cada um
deles acredite que vá. E sei que nunca obrigarei nenhum filho ou filha minha a
despedirem-se de mim dessa forma, com frases feitas e citadas em galope, como
se eu fosse apenas mais uma das criaturas de um enorme rebanho que mudou de
pasto, indo desta para melhor, numa enorme torrente de viajantes que ora estão
cá, ora não estão.
Talvez a vida de campo, como se diz por aí, para além de
obrigar a facas mais afiadas, também obrigue a que haja uma visão bastante
diferente do que realmente significa andar-se por cá e ir-se para lá. Talvez,
ao deliciar-me com os patinhos bebé ou com os coelhos que ainda nem abriram os
olhos e que são tão lindos e brincalhões ao mês de idade, saiba que os tais
mimos que lhes dou, indo buscar erva verde e limpando-lhes a casa, são, na
verdade, o meu agradecimento por saber que um dia, estarei a deliciar-me com
eles de outra forma. Talvez os velhotes e velhotas preocupadas com a idade e
com os anos de nascimento estivessem apenas a fazer contas à vida, como se tudo
isto fosse uma espécie de lote de apostas e de probabilidades mais ou menos
certeiras, cuja estatística necessita de constante actualização.
Talvez, enquanto penso que nunca vi ninguém por estas
bandas com escaldões no rabo, andemos todos em busca de algo que talvez nem
saberemos de onde venha mas que sabemos, ao certo, para onde vai. E talvez seja
esta certeza que, por vezes, faça com que nos esqueçamos que o entretanto não é
eterno, não dura para sempre e que há-de chegar o dia em que se terá de ir a um
funeral que nos coloca no devido sítio, cara-a-cara com a nossa própria
mortalidade e, para mim, acima de tudo, com a mortalidade dos outros cuja
ausência seria, para nós, como se parte de nós também ficasse enterrado por
baixo da tal terra movida pela pá eficiente do coveiro.
Há uns anos, ouvi dizer algo bizarro a senhora que, pelos
vistos, sabia muito bem o que dizia. Disse ela para o Marido: Que vás tu
primeiro que eu! Ele, meio surpreendido, fez cara de chocado e perguntou
porquê. Respondeu-lhe ela que era por ela saber muito bem tomar conta dele e
que sabia muito bem que ele, sozinho, não seria nada sem ela, que não seria
capaz de superar a ausência dela e que ela não queria que ele sofresse dessa
forma quando ela se fosse. Ele remoeu a questão e, encostando-se a ela,
concordou. Ela, de lágrimas nos olhos, afagou-lhe a mão e sorriu.
Parece-me que tiveram, aqueles dois, um excelente
“entretanto”.
E tudo isto porque passei três dias na praia, a entreter
o meu entretanto, queimei a regueifa, fui a um baptizado e a um funeral antes
de comer o que a Mummy Dearest criou, desde nascença, para nos alegrar os dias
que vamos ignorando apenas representarem menos um que temos para cá andar,
durante visita prolongada de minha Avó cujo luto pelo meu Avô se manifesta nas
roupas pretas que ainda usa (e há-de usar).
Tudo isto porque me apercebi que, apesar dos apesares,
prefiro que seja eu a ir antes de certos outros e outras irem (muito lá para a
frente… daqui a muitos e bons anos…). Ficar sozinha no entretanto que deixarem
não me agrada nada.
E pronto. Era só isto.