27.1.15

Sei quem tu és.



imagem: google 


Passado Cabrão, enquanto lambe os lábios e afia os dentes, olhando gulosamente - Olá! Lembras-te de mim?!, pergunta ele em voz suave, sexy, a pingar de sedução.
Eu, já a esconder o rabo daqueles dentes afiados, sedentos - Sim, lembro-me. Sim, lembro-me e muito bem, oh cabrãozão. O que é que queres?
Passado Cabrão, enquanto sorri e se aproxima um pouco mais – Oh, nada. Só para saber como tens estado. Se está tudo bem.
Eu, a encostar-me à parede, nervosa – Sim, está. Tudo ok e a andar. O que é que queres?
Passado Cabrão – Decidi aparecer… tinha saudades tuas.
Eu, a suster a respiração – E quando é que te vais embora? Tenho coisas para fazer. O que é que queres?
Passado Cabrão, a fingir ar ofendido – Não sejas assim! Ainda agora cheguei! Não queres conversar um pouco? Meter a conversa em dia? Fiz eu este caminho todo para te ver!
Eu, de costas encostado à parede e a olhá-lo nos olhos – O que é que queres?
Passado Cabrão, afastando-se e pondo a mão na anca, em tom de desafio – Bem, já vi que estás mal disposta. Vim só dar-te um recado. Nada de especial.
Eu, de lábios crispados e voz calma, demasiado calma – Qual o recado?
Passado Cabrão, a morder o dedo, armado em inocente – Oh, não é nada de grave! Não te assustes!
Sorri aquele sorriso de quem vai iniciar belíssima refeição. Coloca as mãos na parede, ao lado da minha cabeça, respirando-me para o pescoço com um hálito fétido, quente, podre.
Viro a cabeça, fecho os olhos, aguardo o impacto. Cravo as unhas na parede.
Passado Cabrão – Na verdade, até que não tem nada a ver contigo, mas, claro, porque eu não durmo em serviço, vais levar por tabela. Não achas isso delicioso?!
Ri-se. Um riso gutural.
Viro-me para ele, olho-o de cima a baixo, levanto uma sobrancelha.
Eu, em tom desafiador – Uma tabelinha? Só isso? É o melhor que consegues? Não me digas que te arrumei tão bem que não és capaz de mais do que isso?
Passado Cabrão – Não sejas ingénua, minha cara. Não sejas ingénua. Achas que voltaria assim sem mais nem menos se fosse uma simples tabelinha? Não, não, não…
Passa-me um dedo pela cara, parando no queixo, acariciando-o com a ponta da unha preta, a decompor-se.
Eu, com o cérebro a mil, a começar a formar uma ideia do que aí vem, estremeço. Fecho os olhos, derrotada.
Passado Cabrão, com ar orgulhoso, vencedor – Ahhh! Vejo que já lá chegaste! Diz lá que não é uma jogada de Mestre? Diz lá que, de todas as voltas que podias ter imaginado, nunca, mas nunca, te irias lembrar desta!
Eu, de joelhos a fraquejar – Mas nem tive culpa! Mas eu não tive nada a ver com isso!
Passado Cabrão – E aí está a beleza da questão! É que não tiveste mesmo culpa! Fizeste tudo certinho! Arrumaste a coisa muito bem arrumada e nunca mais pensaste nela! Pródiga, a menina! Um luxo!
Eu – Vai-te foder.
Passado Cabrão – A ti. Vou-te foder a ti. Tens a mania que sabes o que fazes, que não mexes onde não deves? Pensas que me matas?! Que me arrumas?! Que só te lembras de mim para o bem?! Mas quem é que tu achas que eu sou?!?! EU SOU DONO DE TI! DE TUDO! DE TODOS!!
Eu, caída no chão, de joelhos – Vais prejudicar pessoas que também não têm nada a ver com a questão! Porque não vais ter com os verdadeiros culpados?!
Passado Cabrão, com voz doce, melosa – E o que pensas que estou a fazer, hmmm? Primeiro, os inocentes. Esses encarregar-se-ão de fazer chegar a mensagem a quem de direito. Não é genial?!
Ri-se, atirando a cabeça para trás, olhos arregalados. Levanta os braços para o céu. Nota-se uma fenda no ar. Algo quebrou. Sente-se.
Eu, de cabeça pendurada, voz num murmúrio – Nunca vão admitir que erraram. Nunca vão admitir que foi tudo um erro. Se não o fizeram até hoje…
O real significado de tudo abate-se sobre mim. Enrolo-me no chão, lágrimas a escorrerem-me pela cara abaixo.
Passado Cabrão ajoelha-se, passa-me a mão pela cabeça muito gentilmente.
Tapo a cara. Não o quero ver.
Choro.
Passado Cabrão, com voz suave – Não sou tão mau como pensas… Vá, lá…
Eu, por entre soluços, olhos cegos de lágrimas – Vou perder aquela oportunidade. Nunca vou chegar a saber. Não vou poder continuar por aquele caminho. Eu sabia que era perfeito demais! Eu sabia!
Passado Cabrão, em tom de lamento – Não sabias, desconfiavas… Sim, eu sei que desconfiavas que era bom demais.
Sorri de forma condescendente.
Eu, zangada – Vai-te foder. Vai-te embora! Deixa-me! Deixa-me!
Empurro-o com uma mão e depois com o pé.
Eu – SAI!!!
Passado Cabrão, virando a cara para o lado – Eu vou, eu vou. Já terminei o serviço de hoje. Eu vou. Mas, sabes uma coisa?
Eu – SAIIIIIIIII!!!! MORRE!!!!! MORRE!!!!!!
Passado Cabrão, ar enfadado – Não depende de mim, minha cara. Não depende de mim.
Choro, de cabeça encostada ao chão, mãos a tapar a cabeça.
Passado Cabrão, a ajeitar o fato impecável, implacável – Bem, está na hora. Tenho mesmo de ir. Gostava de ficar mais um pouco mas tu hoje estás péssima companhia! Anima-te! Pode ser que me ignorem! Que não me liguem nenhuma! Já pensaste nisso?!
Solta uma gargalhada tão cheia de crueldade que a fenda já criada no ar abre-se um pouco mais. O que anteriormente quebrou quebra-se um pouco mais.
Eu, derrotada, partida – Filho da puta. Sabes bem que não. Que, agora, não há nada a fazer. Filho da puta.
Passado Cabrão – Não sejas assim! Ai! Pode acontecer! Nunca se sabe!
Passa as mãos pelo cabelo. Puxa o colarinho. Mete uma mão no bolso. A outra mexe na gravata.
Passado Cabrão – Ficarei muito surpreendido caso aconteça mas… Nem sempre dá para vos entender, sabias? Os humanos e as suas memórias. O que eu às vezes me esforço por voltar e… nada! Nadinha! Outras, estou eu de folga, desprevenido, e quase que começam guerras por algo que alguém se lembrou de há tanto tempo que tenho de ir consultar os meus registos. Vá-se lá perceber!
Ri-se, divertido.
Eu – Vai-te. Foder.
Passado Cabrão, com ar indiferente – Bem, é desta. Até uma próxima! Sempre um enorme prazer ver-te! Temos de fazer isto mais vezes! Beijinhos à família, ‘tá?
Fecho os olhos com força, desejando que já se tenha ido, que possa abrir os olhos sem o ver ali por cima de mim, a salivar de antecipação pelo que aí vem, pelo que já iniciou, já pôs em marcha.
Abro os olhos, a medo. Desapareceu.
No lugar dele, um montinho de cinza preta.
Assopro. Espalha-se.
Limpar isto tudo vai ser uma merda, penso.
Encosto-me á parede. Respiro fundo e levanto-me. Com o pé, espalho a cinza um pouco mais. Limpo a cara. Endireito a roupa, as costas.
Por muito bem que arrumemos o nosso passado, esse mesmo passado nem sempre fica tão bem arrumado na casa dos outros. E quando não se tem culpa nenhuma, quando não se pode tomar controlo da situação, quando não há rigorosamente nada a fazer, a única coisa que resta é abrigar-nos, acreditar que a tempestade é finita e que, depois dela, o que sobreviver terá muito mais força para continuar com força renovada no futuro, imune ao que o passado decidiu vomitar para o presente.
Viro costas e saio dali.
Passo a mão pela cara, onde ele me tocou. Sinto a pele a arder.
Talvez seja melhor assim. A ver se desta não me esqueço tão facilmente de como nem tudo depende de mim. 

6.9.14

Qual a sensação de estarmos errados?


imagem: google

Na altura, no momento, a avalanche de tudo que fizeste de errado, tudo quanto conseguiste engatar, tudo quanto pura e simplesmente fodeste, recai sobre ti com uma força tal que até te encolhes. Dobras-te sobre ti mesmo, fechas e cerras os olhos, os dentes, as mãos. Os erros levantam a cabeça e tu baixas a tua, sentido o peso da culpa, da vergonha, do puro mal-estar por a lista aparecer e continuar a crescer e parecer nunca mais acabar e ficar cada vez mais pesada e cheia e a dor, a dor, a culpa, e a puta da lista continua a rodopiar, quase como se estivesse a gozar por saber que, agora, com a tua ajuda, só poderá crescer ainda mais.  
Aos poucos, libertas as mãos, os olhos, o estômago. Aos poucos, voltas à tua forma normal, mesmo que ainda um pouco curva, corcunda, até. Olhas para a tal lista, a avalanche, e vês que há lá mais informação. Nenhum “mas” digno de contrariar ou argumentar um qualquer erro, não, mas informações adicionais, soltas, tipo “fun facts” que contextualizam e colocam um foco diferente no alvo de toda a culpa e vergonha.
E aí, quando os olhos deixam de estar semi-cerrados e consegues deixar entrar um pouco mais de luz, vês, percebes, entendes que os erros só são erros após o facto. Qual a sensação de estarmos errados? Igual à de estarmos certos. Só nos sabemos errados depois, depois de acontecer algo ou surgir aquele pedacinho de informação que altera tudo, incluindo o certo para o errado. Ou o errado para o certo.
Mas, não questionamos.  Sentimos a culpa, o lamento e não nos lembramos que, na altura, pensávamos que estávamos a fazer bem. Parece que é desculpa de mau pagador. Parece que é algo que alguém que se está a tentar livrar das suas responsabilidades diria. Parece algo de alguém que se acha sempre cheio de razão. Parece algo que alguém extremamente frio diria.
Na verdade, é a única forma de nos perdoarmos pelos erros que efectivamente cometemos. De perdoar os outros.
Todos estamos certos até haver prova em contrário. Na nossa cabeça, para nós, é assim.
Ou aprendemos com o que errámos ou, então, não, perpetuando os mesmos erros até se tornarem hábitos, parte de nós.
Qual a sensação de estarmos errados? Igual à de estarmos certos.

E isso é que fode tudo. 

3.8.14

Is there anybody out there?


imagem: google

Não é um mega-regresso. Para isso, tinha que ter ido a algum lado. Não fui.
A conversa foi como que interrompida. Pelo menos é assim que gosto de ver a coisa.

Um ano e meio sem aqui vir. Um ano e meio sem Me.
Não vou mentir e dizer que não me fez falta. Fez. Não vou mentir e dizer que escrever aqui não é uma espécie de escape – para o bem e para o mal. É.
Também não vou mentir e dizer que está tudo bem, que não podia estar melhor, que são tudo maravilhas. Não está, podia e não são.
Directamente da Fase Bacalhau que é a minha vida neste momento (nem peixe, nem carne), o mundo não parece um sítio muito bonito.
Mas até começaste a trabalhar depois de 4 anos sem emprego!, ouço reclamarem.
Sim, comecei. Tive muitos projectos pelo meio mas nada que me sustentasse (por muito gozo que me dessem). Quando menos esperava, literalmente de um dia para o outro, veio o tão almejado emprego. Juro-vos, por tudo quanto me é mais sagrado, pudesse, e despedia-me. Não pela parte do trabalho (isso nunca deixei de fazer, mesmo desempregada e sem ganhar um tostão), mas pela parte de não mais me rever (ou estar a custar a ajustar) no “cornos para baixo, boca fechada” em que se transformou o mundo do trabalho. Algo mudou. E não foi para melhor. Desconfio que tenha ido parar ao sítio errado. Desconfio que também tenha mudado mais do que alguma vez esperava conseguir perceber.
E mudei. Muito. Acho. Sinto? Algo assim.
Na verdade, nunca me senti tão perdida, seja a que nível for. Tudo me é estranho, tudo me põe a pensar mais do que o necessário, mais do que devia. Tudo me faz duvidar do que antes tinha por certeza.
E é este o novo ponto de partida – todo um novo mundo estranho que tenho pela frente, com o qual não sei muito bem o que fazer a não ser escolher bem as perguntas que faço. Sim, porque a coisa de ‘perguntar não ofende’ também, entretanto, deixou de ser verdade. E eu tenho tantas perguntas para fazer...

Espero que estejam bem, que fiquem mais um pouco aqui pelo Tasco. Sem vós, não tem nem metade da piada.


Continuemos.